sexta-feira, 28 de julho de 2006

UM CINEMA MARCADO DE MULHERES

Para além do tempo

Ainda garota eu freqüentava o cinema da minha terra, Abaetetuba, sempre como uma festa familiar. A primeira figura feminina que vi na tela foi a Branca de Neve usada num filme documentário exibido pelos médicos da Fundação SESP, no final da década de 40. Em praça pública, o telão no meio da rua, a população era levada à prevenção das doenças através desses filmetes que eram produzidos pelo USIS.
Vejam só: usando-se a Branca de Neve tratando de sete anões sujos de pó das minas de brilhantes, levava-se a mulherada da cidade a incrementar as suas tarefas familiares em torno dos cuidados com o marido e os filhos. Limpar, cozinhar, lavar, assear as crianças e os idosos eram atividades que a bela do desenho animado deixava como recado ás mulheres, prevenindo os homens de que a saúde familiar tinha que contar com esse aparato indicativo e a felicidade de todos dependia desse compromisso.
Possivelmente não havia insurrectas, pois no outro dia ouvia-se nas conversas entre vizinhas os comentários sobre as imagens do documentário e, mais ainda, viam-se as marcas dessas imagens através da prática de tirar cortinas, espanar, lavar, escovar o chão e até pintar os quartos, pelas mãos das mulheres.
Isto que recordo agora tem a ver com a minha idéia sobre a representação da mulher no cinema.
Na maioria dos filmes, incorre-se em recorrências aos papéis ditos femininos, no espaço doméstico, sempre mostrando quem é quem na casa e na rua. Quando há um “Kramer versus Kramer”, que expõe a história de uma mulher fugindo aos esquemas tradicionais e deixa o filho aos cuidados do marido, abandonando a casa, o enfoque tende a ver o personagem masculino com o peso de uma dupla jornada de trabalho, cuidando para não perder o emprego e ao mesmo tempo armar as condições para o cuidado com a criança. E ao retornar em busca do filho, a platéia que ficou na cadeira torcendo para que tudo desse certo na casa do pai solteiro reage e acusa a infeliz demonstrando que já escolheu o seu “herói”.
O inusitado não é o fato do marido não dar conta do recado, mas da platéia não identificar que tanto um quanto outro trocaram de posições sem que lhes afetasse a condição de ser de um dado gênero. Tanto homens quanto mulheres podem ser domésticos ou públicos, basta exercitarem as demandas.
Mas as figuras de “Stela Dallas” (1937, King Vidor) há aos montes. Mãe que dá a vida pelos seus filhos achando que esse é o seu papel, incorrendo em desconsiderar a si própria em função desse sentimento que julga “natural”. Alguém no cinema colocou por lá uma representação dessas que trás muitas lágrimas, mas também muita culpa de quem não segue à risca o recado.
Há hoje outras figuras garantindo o cenário da emancipação das imagens sem jaça do papel doméstico, mas por trás há sempre bastidores que escondem outros rostos responsáveis por esse papel.
As cineastas feministas européias argúem a construção do modelo feminino no cinema como uma posição fora da história e da cultura, definindo-se a sociedade através da história do homem (de classe média e branco), demonstrando-se que: a) “em termos de narrativa dominante no cinema, na sua forma clássica, as mulheres, do modo como têm sido representadas pelos homens nesses textos, assumem uma imagem de que têm status “eterno” que se repete, em sua essência, através de décadas; superficialmente, a representação muda de acordo com a moda e o estilo- mas se arranharmos a superfície, lá está o modelo conhecido.”(Kaplan, Ann.. A Mulher e o Cinema, p. 17) b) Questionamento das histórias tradicionais que excluem as mulheres - não vê-la no modo total – cujo fenômeno foi orientado para um início certo, mas para uma história geral - gerando o relativismo das posições e situações, sem levar ao essencialismo.