sexta-feira, 29 de julho de 2016

PICKPOCKET – O BATEDOR DE CARTEIRAS



Martin LaSalle, o ator uruguaio de “Pickpocket", de Robert Bresson.

Ninguém sai de uma sessão de cinema sem a noção das imagens apresentadas e sem uma opinião sobre o que assistiu. Do mesmo modo posso dizer que assistir a um filme de Robert Bresson significa a certeza de reconhecer nele a verdadeira arte das imagens. Não vai ser assim se o público já abrigou entre suas emoções o gosto pelos blockbusters e/ou pelos esquemas ficcionais que a indústria chama “cinema”. Triste.
Há alguns anos assisti a “Pickpocket – O Batedor de Carteiras” (1959) numa das sessões do Cineclube da APCC. Nesse momento, o filme não me trouxe tantas ideias do que estava registrado nas imagens, conteúdo discreto e profusão de elementos narrativos. Os acúmulos sobre essa arte àquela altura ainda me tornavam insegura e sem a maior amplitude da dimensão estética nas experiências de certos diretores. O fio condutor da representação narrativa ainda esperava o acontecer obvio. Aos poucos, ao assistir a outros filmes de Bresson àquela época senti a diferença entre os demais.
Revi o filme esta semana. Uma fantástica aula de cinema. Reflexos sobre o que deve ser tratado em um curso de cinema e a partir dele mostrar o que não ensinar. A começar pelo modo de desenvolver o tema e traduzir o processo narrativo em várias teorias.
O recorte inicial ou a primeira cena expõe, em resumo, o que o filme não vai ser, ou seja, ninguém espere um suspense. Também o próprio título já esboça o que o público vai ver – as estratégias de um batedor de carteiras. Se essa maneira de construir a narrativa se processa para desarmar as expectativas sobre o argumento, na verdade, trata-se de um ponto favorável de Bresson enquanto autor aplicando um modelo narrativo partindo de sua concepção de desmontar os tradicionais enfoques cinematográficos, haja vista que se já estamos cientes do que irá ocorrer, anular as expectativas é o foco condutor do que o público vai ver sobre as artimanhas do personagem. E é isso o que o diretor espera ao deslocar o interesse de um lado para o outro ou seja como vão se dar as ocorrências.
A câmera segue o assaltante Michel (Martin LaSalle, urugaio) numa rotina contínua em busca de vítimas. Em cada situação ele procura apreender os equívocos e as maneiras para não ser percebido em ação, descrevendo, em off, na primeira pessoa, o desenrolar dos acontecimentos e/ ou registrando em notas que escreve. Na primeira tentativa de roubo, num hipódromo, as mãos nervosas carecem de prática. Essa tomada é lenta. O tipo tenta uma primeira vez abrir a bolsa de uma mulher. Permanece parado atrás dela, o olhar para a frente e de vez em quando para o ato em potência, as mãos se mexem, capturadas pela câmera. Na segunda tentativa consegue desapertar os botões e deslizar as mãos para dentro da bolsa tirando o dinheiro. Ao sair do campo da ação é levado pelos policiais para a delegacia. Eles não podem provar que o dinheiro que encontraram com ele foi roubado. Ele está tenso, vai para o seu apartamento, adormece e só no outro dia vai a moradia da mãe a quem não vê há muito, mas mesmo assim, diz à jovem Jeanne (Marika Green), a vizinha que cuida dela, que não vai entrar, mas deixa dinheiro para as despesas.
Nessas sequência, Bresson expõe seu personagem e o que este vai dispor desse “oficio”, desenvolvido com todas as artimanhas necessárias a um verdadeiro profissional da coreografia executada com as mãos, afanando cédulas e objetos pessoais na abordagem às pessoas, aplicando truques que não são reconhecidos na hora pelos desafortunados. Há, inicialmente, uma entrega solitária a esse oficio, mas em outras vezes Michel articula-se com parceiros que também são seus “mestres” na “arte”. Múltiplos locais são o campo propício para aplicar os golpes, como os transportes públicos, o hipódromo, os bares, as ruas, por ex. Certas vezes é levado à delegacia, outra vez o delegado o encontra num bar. O diálogo dos dois evidencia o modo de pensar do personagem em relação às leis e ao crime: "Será possível admitir que homens com certas habilidades, dotados de inteligência, talento ou genialidade, e que são indispensáveis para a sociedade, ao invés de se sentirem paralisados sejam livres para desobedecer às leis em certos casos?" A ideia é rechaçada pelo delegado mas, numa visita deste à casa de Michel, este recomenda o livro "The Prince of Pickpockets”, escrito por George Barrington (1755–1804), um batedor de carteiras irlandês, vivendo em Londres, que registrou suas experiências. No diálogo vê-se de onde sai a filosofia de profissionalismo do tipo que segue entre erros e acertos a vida que leva. Sua lógica é transubstanciada como arte reveladora daquele filosofia de ação compulsiva desse tipo de roubo. E nesse processo ele tende a desenvolver as várias artimanhas para chegar à pureza da prática. Ensaia formas de tocar os bolsos internos, ou objetos que podem ser retirados de outrem sem que estes o percebam. É o tato que sonda as condições ótimas daquele momento.
O cinema minimalista de Bresson foge aos aspectos teatrais e de enredos comerciais. Sua câmera é livre para seguir o gestual de Michel, a maneira de este circular, de ensaiar o meio de tatear intra-vestes de suas vítimas, de falar (narrativa econômica), de olhar. Este, aliás, é essencial na exposição do modelo que o personagem assume nas várias evidencias que o filme explora sobre o objeto da narração. A vida dele se torna um segundo plano, por exemplo, o contato com a mãe doente a quem não visita, mas só sabe dela por Jeanne. Bresson transborda em demonstrar que se preocupa com a criação e não com a reprodução dos detalhes pessoais da realidade de vida do tipo, tão ao gosto do cinema tradicional. Planos detalhes estabelecem a ação do roubo. O tato é fundamental para extrair o tipo de olhar que o “batedor de carteiras” estabelece na ação objetivada. Os planos fechados nos closes sobre as mãos (que roubam o relógio), na bolsa, nos bolsos do paletó dos passageiros dos transportes públicos, dos transeuntes a espera de um taxi funcionam expressando uma coreografia que marca a conduta perfeccionista de quem diz não precisar de emprego para viver. Compulsão que desmotiva o interesse num emprego tradicional.
E nesse formato chega-se ao momento em que o truque passa a ser da polícia para prender o tipo que se julga inofensivo à lá Barrington. E na prisão reflete sobre o que esperar da interrupção de sua liberdade. Mas então há Jeanne. Que pode superar o pensamento destrutivo de Michel. Mas então há as grades. Que possivelmente não serão capazes de suprimir o sentimento entre os dois.
“Pickpocket” é uma aula de cinema.

Jeanne (Marika Green) o amor de Michel. 

segunda-feira, 25 de julho de 2016

PROCURANDO DORY



Hank e Dory - dois objetivos diferentes na mesma jornada

Tenho dedicado pouco tempo para a opinião sobre filmes. Mas tenho assistido a tantos e de tantas nacionalidades que certamente daria ao menos uma página a cada um. A elaboração de outros textos e outras atividades tem tomado a maioria dos meus horários. Justificativa? Não preciso. Evidencio as demandas de algumas pessoas, sem me desculpar. Também não preciso. Aos setenta e seis não careço desse pretexto. Mas ainda não aprendi o método de reduzir um texto para cinco ou dez linhas sobre determinado assunto daí os custos da escrita sistemática. Posso até exercitar. Mas fujo de meu modo de ser.
O prazer em assistir a uma animação, neste estágio da vida, permanece vivo. “Procurando Dory” (Finding Dory, EUA, 2016) entrou no páreo. Fazendo o lazer dos que ficaram na cidade neste mês de férias, o filme já levou até meu bisneto Lucas para uma sessão. No meu caso, uma tarde circulando no Shopping Bosque Grão Pará não poderia me afastar das salas de cinema. Liberdade e opção. Lojas ou Dory. Esta ganhou.
A Pixar, que o público de cinema já inscreveu como grande produtora da animação digital norte-americana (desde “Toy Story”, 1995) mesmo se transferindo (capital versus capital) para a Disney, deu continuidade às aventuras aquáticas inter e intrapeixes iniciada com “Procurando Nemo (2003) capturando agora uma das figuras que circularam à procura do filho de Marlin em todos os espaços aquáticos que pudessem esconder o peixinho perdido. Assim, em meio àquele momento em que os diversos tipos de peixes-criança vão para a escola (sob ensinamentos do professor – uma arraia) estando Dory no meio, esta aprende com os pais a memorizar mais atentamente as coisas que lhe são ensinadas, pelo esquecimento súbito que a aflige, e ao seguir nadando esquece o caminho de volta ao sair da proximidade deles. Na busca pelo lar perdido, “corre o mundo” das águas, percorre múltiplas situações em que as diversas espécies de habitantes do mar circulam. Através da memória-relâmpago capta alguns momento de sua vida anterior (flashback) e vai encadeando e narrando aos amigos parceiros na descoberta dos pais. E nessa odisseia agrega as espécies mais diversas, acompanha os malabarismos às vezes impossíveis de reconhecer nas estripulias de um polvo, de uma baleia, de uma beluga, de uma tartaruga e por ai vai a trupe que arrasta ao redor de si a bela peixinha azul procurando seu lugar de moradia.
Em “... Dory”, o diretor Andrew Stanton (que há treze anos realizou “...”Nemo”) cria analogia com o primeiro, mas neste caso, é uma filha a procura dos pais. E nessa procura a peixinha se torna um ícone de muitas travessias que terá que fazer para entender, muitas vezes, o que está fazendo e/ ou para questionar que não sabe falar baleiês. Lida com o passado expressando o que sente, às vezes interpelando-se nas dúvidas sobre se segue seu instinto ou se prossegue em meio às informações na busca pelo lar aonde deixou os pais. Que nessa jornada da filha não se juntam aos personagens da narrativa, somente aparecendo nos flashbacks, daí estes efeitos de linguagem se constituírem em recortes importantíssimos do filme. Deles surgem as imagens criadas por Dory que se posiciona em tomar suas decisões de chegar até suas origens. Nesses takes evidencia-se a sua necessidade em criar a identidade de filha, reconhecendo-se perdida mas considerando-se amada. Procura superar qualquer situação angustiante no momento do esquecimento atendendo o que os pais lhe haviam dito: “continue a nadar, continue a nadar”.
A aventura de Dory se confronta com momentos interessantes: a multiplicidade de personagens que entram e saem de cena, mas deixam a sua marca na odisseia da jornada (ex. as duas focas sobre a pedra, um lado cômico da animação); a parceria da peixinha com o polvo, Hank, um transformista memorável, que se camufla diante da adversidade, e que se torna o grande interessado em que Dory lhe repasse o cartão de identificação recebido ao ser levada para o parque aquático para um processo temporário de melhorias até “receber alta”; o diferencial nos objetivos dos dois - Hank pretende viver em cativeiro ou seja, permanência no parque; Dory espera ser lançada no mar livre, para chegar aos pais.
Família, amizade, confronto com mundos obscuros e enfrentamento ao desconhecido, ao esquecimento, às descobertas para além das estratégias em fugir dos obstáculos, portanto, construir objetivos nem que seja o manter-se na filosofia parental (nadar, nadar, nadar) que edita a fortaleza do ser qualquer que este seja. É a Disney que está dizendo isso? Importa o modo como construir essas ideias. Quebrando vínculos com o medo, a covardia, a mesquinhez.

A beleza da estrutura fílmica (roteiro e direção), nas imagens, no décor, na trama divertida que orbita na argumentação, confere aos roteiristas (Stanton e Victotia Strouse) a credibilidade de um bom trabalho.