segunda-feira, 27 de março de 2023

AS TERAPIAS DO “AMOR” DOS ANOS 1950-1960. E AGORA?

 

Entre cinéfilos/as, rever filmes é uma dinâmica da vivência no cinema. Há os que se interessam pelos clássicos dos grandes diretores e autores dessa arte. Há os que se interessam pelos temas que marcaram época. E há os que reveem filmes independente de qualificações especiais. Veem por que querem ver, mesmo. É o nosso caso.

Dia desses assistimos (Pedro e eu) a “Tempero do Amor’ (The Thrill of It All, EUA) de 1963, um filme com a Doris Day e James Garner, dirigido por Norman Jewison (a cópia do filme é nossa). O argumento refere o dia a dia de uma dona de casa, branca, classe social média, atividades domésticas, casada com um médico de boa posição. Em um jantar com pessoas da elite ela conta um fato ocorrido horas antes com os filhos que preferiram lavar os cabelos com um sabonete da marca Sempre Feliz, aos usados antes. Entre os convivas, estava o empresário desse produto e, animado, convidou-a para um comercial sobre a sua experiência. À medida que o programa ganhava popularidade os lucros aumentavam, assim como o valor do salário da apresentadora, dona de casa. Vida doméstica em baixa com filhos e marido cobrando a presença da mãe e da esposa. Ao vê-la tão importante mais do que ele próprio, o marido resolve aconselhar-se com um psicólogo do hospital. As mudanças são radicais nas atitudes dele, num fazer de conta que já encontrara os cuidados de outra pessoa. O que ocorre? A esposa sente a culpa, deixa o emprego, retorna ao dia a dia doméstico, e ainda vai curtir uma gravidez, considerando-se felicíssima porque havia retomado o amor do marido. Esses filmes tiveram ampla repercussão na época, haja vista a homogênea sintonia com as regras tradicionais para as meninas e mulheres.

Desta argumentação extrai algumas evidências que estão nas discussões atuais sobre a situação das mulheres, focos da extrema violência que as submete. A atitude da personagem vivida por Doris Day, ao se “re-compor” para a vida do lar é tratada como expressão do “amor” e por culpar-se pelo trabalho fora de casa, trazendo o desapego do marido, haja vista que pelas normas patriarcais a esposa deverá estar à disposição para as necessidades deste e isso é tratado como “amor familiar”. A sedução reversa pelo aconselhamento do psiquiatra da empresa incita o marido a uma dupla vida supostamente afetiva com outra mulher, criando ciúmes para retomar a companhia da esposa. A posição social que esta assumiu ao se tornar conhecida no trabalho com uma imagem pública, enfrenta o “des-poder” dele diante dos colegas médicos que esperam uma resposta masculina positiva.

Na década de 1960 os filmes impunham a representação dos modelos femininos em que essa é a versão da uma “terapia” para a manutenção da família com a submissão feminina em franca positividade. E o que é possível anotar na geração das mulheres que assistiu a esse filme e aos demais nesse modelo onde o machismo estrutural, o racismo, a estrutura capitalista mantinha as cordas do violino enfeixando e enfeitiçando donzelas e que estavam aptas a casar?

Nessa década inicia-se a segunda onda feminista e esses modelos vão enfrentar a crítica necessária para a ruptura com a submissão das mulheres. As instituições (família, igreja, sociedade) encaram essas críticas como anti-familiar, desamor e tantas e mais alusões negativas que procuram desmontar as críticas e subverter a conscientização feminina sobre sua real condição de vida. As mulheres mais ousadas se afastam dos esquemas tradicionais enquanto as demais, possivelmente a maioria, se amedrontam com as retaliações sociais que surgem de todos os lados contra elas. E alguns/algumas seguem até hoje na ideia de que o feminismo tende a ser nefasto socialmente. Na verdade, ele é uma articulação que previne a violência contra as mulheres e denuncia o feminicídio. Precisa ser entendido pelas próprias mulheres sobre a sua história de vida refletindo sobre sua vivência.

A reflexão sobre os filmes que assistimos e sobre a perspectiva do lugar das mulheres-personagens nesses filmes é também um processo de crítica feminista à arte cinematográfica que invade nossas vidas em todos os momentos culturais e de lazer. E, nestes, pensar o lugar da mulher é uma necessidade, porque não dizer exigência, para que não haja uma circulação de atitudes pensadas críticas quando na verdade são recorrências ao status quo. O cinema tem seus redutos castradores como os produtores, diretores e mais, e mais.

Na festa do Oscar-2015 algumas atrizes presentes protestaram sobre as perguntas que fazem a elas sobre seus vestidos no tapete vermelho, mas esperam tratar de sua carreira, planos, atuação. Essa é uma atitude das atrizes críticas de sua representação no ambiente cinematográfico. Hoje elas avaliam a forma discriminadora de serem tratadas nos papéis que representam ou nas questões que são apresentadas nas entrevistas a que são submetidas devido ao tipo de perguntas que a mídia lhes faz. Esse não deixa de ser o confronto com o mundo masculino da arte cinematográfica que sempre situou o homem com os principais papéis. Elas estão constatando também que mesmo nessa área não são levadas a sério. É importante a conscientização dessas grandes mulheres que circulam em múltiplos papéis além de seus próprios enquanto seres humanos. Elas merecem respeito.

Vamos aos filmes, não deixem passar a sua versão sobre a crítica social às mulheres -protagonistas nessa arte.

Feminismos, Presente!

Mulheres, Presente!

segunda-feira, 13 de março de 2023

E O OSCAR VAI PARA ....

 

Na noite de 12/03, foi promovida a entrega das estatuetas anuais do cinema norte americano, considerada a “festa do cinema” em que pese outros eventos promotores dessa arte e em níveis considerados mais valorizados. Se antes era possível chamar de “festa de Hollywood” a entrega do Oscar, presentemente não é mais possível essa designação. Houve inclusão de filmes de produção internacional, nas categorias específicas e muitas premiações que equivaleram reformular a dimensão da esfera nacional norte americana, no convívio do mercado de produção, distribuição e exibição. Sim, esse aspecto é que agora determina quem é quem nas indicações dos filmes, por meio de uma seleção colegiada multidividida de eleitores e selecionadores para essa noite esperada por milhões de cinéfilos e, principalmente, por espectadores médios mundiais.

As indicações deste Oscar 2023 seguiram a fórmula de anos recentes em que o cinema asiático, europeu, africano e de outras regiões trouxeram sua significativa presença para “encantar” esse mercado exibidor norte-americano, porque para concorrer nesse evento e ao menos ser indicado para receber essa estatueta, há regras datadas e específicas que dizem respeito em especial aos produtores. Sabe-se que o sistema da arte sob o capitalismo não foge à regra de se constituir um produto mercantilizado e exigente das regras de distribuição.

Assisti, com Pedro Veriano, a maioria dos indicados ao Oscar deste ano. Marco Antonio Moreira, nos emprestando cópias em DVD dos filmes lançados e, também assistidos nos canais streaming facilitadores atuais desses lançamentos. Tecnologias e narrativas interessantes que nos faziam optar sobre este ou aquele vencedor na tal noite do Oscar.

A 95ª cerimônia de entrega dos Academy Words foi longa. Com a lista dos indicados na mão e a caneta ao lado, discutia com o Pedro e com o Marco Moreira (via WhatsApp), as premiações que iam sendo reveladas na abertura dos tradicionais envelopes sob a guarda de atores e atrizes, algumas caras novas nesse mundo do cinema. E nessa estratégia chegamos até a madrugada deste 13/03.

Em dezembro do ano passado assisti, no Amazon Prime Video, a “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” ( EUA, 2022, 2h19min) escrito e dirigido por Daniel Scheinert e Daniel Kwan. Houve uma sensação inicial de estranhamento pela narrativa em que milhares de partículas se interpenetravam, interagiam, outras ficando estáticas, ou se movimentando loucamente. Esse processo incomoda aos que estão acostumados com a “linguagem certinha” sobre um tema. Que tema? Perguntei a mim mesma. E revi o filme. Fui juntando algumas ideias sobre ele, sobre as personagens, sobre uma em particular. E fui gostando do que assistia.

Não li nenhuma análise crítica ao filme porque eu precisava das minhas próprias ideias para a demonstração pessoal sobre um assunto que o cinema estava dizendo – é difícil  de entender – e eu acreditava estar vivendo aquela realidade. Na ficção científica? Não era o caso. Emergiu a figura de Evelyn (Michelle Yeoh), uma mulher, que administrava uma lavanderia familiar. Nessa situação, outras tarefas se interpunham nas condições de vida dela, a administração da casa, onde os cuidados com todos se trançavam entre suas próprias despesas em confronto com as notas fiscais que teria que encontrar sobre os custos na empresa, o cotidiano da família e as diversas decisões que tinha que tomar em nome de sua vida afetiva, de seus preconceitos, do tempo para negociar suas dívidas com a auditora implacável da receita (Jamie Lee Curtis) em torno da papelada comercial que nem sempre estava conforme as demandas da fiscalização.

Esse multiverso que desdobrava a partir daquelas cenas se confundiam com um jogo como se constituíssem em universos paralelos que estavam em circulação no cotidiano de Evelyn. Ela priorizava tudo, defendia seu ponto de vista, mas recorria contraditoriamente em novas pegadas a caminho. O idoso, a quem alimentava e medicava, o marido que expunha algumas ideias , eram aceitas, mas ao mesmo tempo  se tornavam inúteis e  havia a recomposição da atitude. Revisão do preconceito homofóbico, do etarismo, do amor, de todas as circunstâncias que escravizam , que destroem a liberdade, que desmontam o afeto.

Então, vejam minha visão se integrava à de milhões de mulheres que vivem nesse multiverso. Não era um filme de ficção científica, mas a evidencia que estas condições em que o caos se ordena são vividas por nós, mulheres.

Estou eu aqui, apaixonada pelo filme. Porque trata de um multiverso feminino que espelha o fio das vivências das mulheres.

Vou re-re- ver o filme. Porque tudo em todo o lugar ao mesmo tempo, é a nossa prática cotidiana.