quinta-feira, 27 de março de 2014

“O ESTRANHO EM MIM” & OUTROS VIDEOS

Susane Wolff em "O Estranho em Mim": depressão pós-parto.

O cinema tem exposto varios casos clínicos com sucesso até mesmo entre médicos (no caso, os maiores críticos desse gênero). Circulando em DVD, sem passar pelos nossos cinemas (o que não é de espantar) “O Estranho em Mim” (Das Fremde in Mir, Alemanha, 2008) terceiro filme de longa metragem dirigido por Emily Atef (com roteiro dela e de Esther Bersnstorff) vencedor de 7 prêmios internacionais, inclusive em S.Paulo. Pelas minhas anotações de pesquisa (com consultoria dos médicos da familia, diga-se) trata-se de um caso do que se chama DPP (Depressão Pós-Parto). A primeira metade da narrativa acompanha Rebecca (Susanne Wolff), no processo gravidico de espera da chegada de seu primeiro filho. Até aí tudo normal com a expectativa aliando futuros mãe e pai numa alegria conjugada. Mas ao nascer a criança, Rebecca começa a sentir uma espécie de repulsão. Seu leite é insuficiente, o menino chora muito, e ela, sozinha em casa, vai definindo uma ojeriza por aquele ser sobre o qual não experimenta nenhum sentimento, salvo uma espécie de angústia pelos gritinhos de fome que ele emite.
O enredo ganha uma sequencia que ilustra bem o que a DPP pode originar na vida de um casal: já sentindo que a esposa (depois de ter tido crises de fuga, de suicidio e etc), está melhorando psicologicamente, o marido deixa-a com a criança. Ao retornar para casa não encontra nem mãe nem filho. Os dois tinha ido passear naturalmente. Contudo, o temor na expectativa de que ela teria praticado alguma coisa de ruim ao bebê faz com que o esposo chegue a chamar a policia. A atitude dela com o bebê no colo é de alegria, conta o que fez, mas é recebida com furiosa repreensão. Mesmo porque há um episódio anterior, quando a doença começa a se manifestar, que ela abandona o filho no carrinho, em plena rua, e sai de ônibus sem saber para onde. Quando percebe o que fez, volta correndo. Já está uma multidão em volta do menino e logo chegam policiais. Em outro momento tem ânsia de afogá-lo na banheira.
A depressão pós-parto é evidenciada até mesmo no seu processo evolutivo. Há cura, e o filme mostra o tratamento, mas a confiança em quem já manifestou sintomas custa a se fazer sentir.
Uma narrativa exemplar e um desempenho excelente de Susane Wolff. Um filme imperdível. Enquanto este exemplar mostra o processo de adoecimento de uma mãe e as atitudes que podem atingir o filho e sua autoconfiança, há um vídeo sobre o aborto, produzido por uma facção religiosa, que se limitar a condenar o processo sem análise que se ocupe da mãe. Esta “coisa” está sendo programada para o cine Olympia. Deve ser evitada como todo filme sectário.
Não havia assistido no cinema ao filme “Tabu” (Portugal, 2011) de Miguel Gomes. Vi agora em DVD. Focaliza Aurora, uma mulher que vive em um prédio, em Lisboa, tendo como companhia uma africana de meia idade. Quando ela morre descobre-se o seu passado na Africa onde se encontram raízes do império português.
O filme começa com uma sequencia na selva onde um branco caçador se entrega a um crocodilo como prova de sua desilusão de valores reais. Daí desloca-se para a capital de Portugal avançando no tempo. Uma narrativa lenta, quase contemplativa, vai estudando personagens como Pilar (Teresa Madruga), Santa (Isabel Cardoso) e a citada Aurora (Laura Soveral).
O filme, em preto e branco, ganhou 6 premios inclusive o de melhor diretor em Berlim. Entre nós foi mencionado entre os melhores do ano por colegas da ACCPA. Vale a pena conhecer.
Lucia Murat continua na temática que é o golpe de 1964. Em “A Memória que me Contam”(Brasil, 2012) ela elabora um autoretrato onde focaliza um grupo que resistiu aos militares do período e que hoje reflete sobre esse tempo.O filme é detalhista e pouco inventivo, utilizando a oralidade como processo de exposição e escuta das memórias desse tempo, mas a sinceridade de propósito poreja em cada sequencia. Foi premiado no Festival de Moscou.


SEM ESCALAS



Liam Neeson é o agente federal aéreo

A história do cinema registra muitos filmes sobre suspenses aéreos. Há dois anos surgiu “Vôo” (Flight) de Robert Zemeckis onde Denzel Washington saindo de uma ressaca  com drogas e bebidas pilota um avião cheio de passageiros. Nas acrobacias para conseguir alcançar um aeroporto, chega até a voar de ponta cabeça, mesmo assim causando algumas vitimas fatais. Agora é a vez de Liam Neeson protagonizando um agente federal aéreo que se acha num avião num percurso de Nova York a Londres e recebe, no seu celular, uma mensagem de alguém que planeja matar um passageiro a cada vinte minutos se não for transferido para uma conta bancária o deposito no valor de US$180 milhões. Não se sabe como vão acontecer essas mortes e muito menos quem está ameaçando. O primeiro caso fatal surge numa briga do próprio Neeson com um colega, numa dependência do aparelho. Mas há casos inexplicáveis e começam a brotar as suspeitas. É justamente a descoberta do criminoso que seduz a plateia e a trama se torna ainda mais sinistra quando é descoberto que a conta bancária que deve receber o dinheiro está registrada no nome do próprio agente (Nesson).
Misturando fórmulas que vão de histórias de Agatha Christie, Ellery Queen e dos “disasters movies”, o roteiro de John W. Richardson, Christopher Roach e Ryan Engle, dirigido pelo espanhol Jaume Collet-Serra, mantém a atenção dos espectadores mesmo não se furtando de estereótipos diversos (alguns para despistar os detetives da plateia).
A narrativa se exime de chavões do gênero como os flash-backs que reportam detalhes das vidas de algumas personagens. Não há nem fash-fowards, intercessões que avançam no tempo. Tudo é centralizado no voo, o “sem escalas” do próprio titulo brasileiro. E neste ponto lembra o que os Cuarón (Alfonso e Juan) fizeram agora com “Gravidade” onde toda a ação se dá no espaço sideral.
Mantendo o clima em tempo e lugar bem delimitados, o filme repousa nas performances que se destacam em cada situação e, assim mesmo, sem detalhar o perfil da maioria dos passageiros do avião. O que mais se torna evidente é o protagonismo de uma mulher, Jean Summers (Juliane Moore), passageira acostumada a viajar que de inicio luta para conseguir um lugar perto da janela. Isso gera a primeira suspeita. Mas ela é quem passa a auxiliar o personagem da história, Bill Marks (Neeson). Daí a ação se desloca para a pista deixada pelo médico que atende alguns passageiros mortalmente feridos, o arabe Frahim Nassir (Omar Metwally). Por vestir-se como seus patrícios, o doutor é um suspeito “nato”. Por outro lado, os sherlocks de plantão desconfiam de tipos muito marcados. Bem, não adianta ir muito longe na trama. Como todo filme do gênero “Sem Escalas” propõe surpresas. E não deixa fugir o suspense quando passa a ser conhecido de todos que além da ameaça de morte por passageiro há uma bomba a bordo. E onde está esse artefato? Num pacote de cocaína...na bagagem de algum dos passageiros. Não há pista sobre isso.
O filme apresenta orçamento relativamente, quase sem custo, lançado em Belém (e só chegou por isso) estando durante duas semanas na frente dos blockbusters na lista de maiores sucessos de bilheteria nos EUA. Bom para o ator de “A Lista de Schindler” que agora se especializa em tipos de heróis ou vilões colocados em situações perigosas.
Uma boa diversão. Nada mais que isso e nada mais se pede disso.



NINFOMANIACA 2

Charlotte Gainsbourg em Ninfomaníaca - Parte 2

Na primeira parte do depoimento de Joe (Charlotte Gainsbourg, “Ninfomaníaca 1”) ao intelectual Selligman (Stellan Skargärd) que a encontra ferida num beco próximo a sua casa, ela expõe o seu tropismo pela atividade sexual desde adolescente, começando quando, ainda criança, deitada na relva, próxima a um bosque, seu pai diz-lhe que tem afinidade espiritual por uma arvore, e vê um vulto que a convida a levitar. Nesta segunda parte - “Ninfomaníaca 2” (Nimphomaniac 2, Dinamarca, 2013) segue o depoimento a Selligman e se inicia com um replay da sequência, explicando ao seu ouvinte que há algo emblemático naquela aparição aos 12 anos, deitada na relva. Pensa ter visto duas figuras femininas ao lado de uma luz intensissima e sente prazer. Seria a Virgem Maria? Na parede da casa de Selligman está um ícone da igreja oriental com a imagem da santa (um quadro tradicional muito visto no ocidente). Ele explica que há uma divergência fundamental entre as igrejas orientais e ocidentais. Na primeira, estaria a busca da felicidade, na segunda o encontro com a tristeza – ou a dor (culpa, castigo, mal). No caso de Joe, ela estaria deixando a primeira igreja e entrando na segunda ao narrar a ausência de orgasmo. O filme ganha esse aspecto religioso inusitado. 
Joe procura o meio médico quando se une a Jerôme e ao filho gestado, ao perder a faculdade de sentir orgasmo. Alimenta o retorno ao desejo e busca quem consiga fazê-la sentir prazer no sexo. E outra vez o filme volta à questão do amor e dor, no “tratamento” a que a jovem se submete com um terapeuta que usa artificios ardilosos chicoteando-a com um objeto mais contundente do que um açoite comum. Nesse ponto, Selligman acha que é mais um fator místico (40 chicotadas é de uso romano no primeiro século da era cristã). E quando Joe perde tudo (familia e trabalho), sentindo necessidade de se empregar para subsistir, o “emprego” é suborno sexual às pessoas. Para isso conhece Pe, uma jovem de passado polêmico, com um defeito na orelha como uma espécie de marca da sua gênese patológica. Trata a moça como filha/amante, mas chega o momento em que isso não dará bom resultado, ou, como diz Selligman, não a afasta do caminho do mal.
O filme é dividido em episódios e nisso cabe a ironia que dilui o trágico e corta um possível liame melodramático. O último episódio chama-se “A arma” e na concepção religiosa que sempre acoberta a ação há o momento em que o uso de um revolver, pela mulher que durante a vida turbulenta aprendeu de tudo, falha na hora precisa. Mas não falhará uma segunda vez se alertado antes pelo ouvinte & conselheiro.
 “Ninfomaniaca” passa por cima do conceito freudiano do excesso sexual. O que seria um caso clínico, não só ganha o aspecto alegórico aliado à religiosidade como a um constante desencontro entre o desejo e a razão, com um elemento tentando compreender o outro e a busca pela felicidade passando por tormentosos caminhos moldados pelo comportamento social.
Na parte 1 e 2 de “Ninfomaníaca” é clara a discussão a que remete o diretor em torno da sexualidade e do amor, considerando que uma não tem nada com o outro. Se se observa o momento precursor dado a perceber sobre essa evidência vê-se que a narração de Joe sobre a aparição que a faz levitar aos doze anos, com esse ato levando-a ao orgasmo, ela está só e se sente entregue às luzes, iniciando a estimular sua sexualidade e gostando do que sente. Com Jerôme e o filho Marcel, na estrutura familiar tradicional, perde o que sentia e deixa de gostar de si. Prefere buscar na dor o retorno à sensação de desejo pelo prazer de sentir-se.

Desta vez Triers distanciou-se profundamente do seu estilo “Dogma”, aquela linguagem que se propunha a desprezar todas as conquistas formais do cinema e tentar uma filmagem realista ao extremo, com câmera na mão, luz natural, atores sem maquilagem e edição extremamente simples, quase sempre apegando as sequências na ordem direta da gravação (tal como se fazia no cinema amador). Tanto a primeira como a segunda parte de “Ninfomaniaca” usa a linguagem linear e se esmera nas interpretações. Isso não diz que o filme se realize de todo, mas fica mais fácil de ser observado e, sequer, interpretado. Filme muito bom.