quarta-feira, 5 de outubro de 2016

AQUARIUS – SENTIMENTO, LUTA E POLÍTICA

Sônia Braga - num momento excepcional 

O diretor, roteirista e produtor pernambucano Kleber Mendonça Filho realizou seu segundo filme longa-metragem, “Aquarius” (o primeiro, “O Som Ao Redor”, 2012), cuidando que o argumento não se restringisse a um só eixo dramático, mas a uma maior amplitude de sub-tramas inscrevendo-o a partir de uma personagem, da presença de pessoas e manifestações sociais que demonstrassem o macrocosmo de um país que pudesse ser capturado do espaço micro – de uma família que festeja um aniversário e a recuperação da saúde de uma jovem mulher, à captura de um momento na história desta mulher já idosa – com circulação entre as múltiplas determinações da produção material dessa história, com o olhar na presença da política, dos sentimentos, dos afetos, das lembranças, das formas de vivência que mostrassem as pessoas e os contextos diferenciados.
No primeiro foco a jovem Clara emerge de cabelos à escovinha, circula entre amigos na festa de aniversário no apartamento em que a tia celebra 70 anos. O deslocamento dessa sequência inicial para Clara (Sônia Braga) já idosa desenvolve-se em uma outra perspectiva, no mesmo apartamento em frente à praia da Boa Viagem (Pe). Aos poucos, essa figura vai se definindo como uma pessoa que cuida de si própria em um cotidiano solitário, mas cheio de vida, circulando entre o mando da casa, a convivência com uma empregada e os passeios à praia onde curte conhecidos provisórios, além de criar novas amizades.
Nesse reflexo da presença de Clara no apartamento centra-se o segundo eixo do drama de “Aquarius” quando ela resiste aos especuladores do mercado imobiliário que a visitam querendo comprar seu imóvel para construir algo ”mais moderno”, como dizem. Ela foi a única pessoa que não aceitou sair de lá, seu espaço de moradia, onde tem tudo o que quer, conviveu com seus amores, marido e filhos, criou um forte vínculo sentimental ao lugar. Suas lembranças são muitas e essas vão sendo repassadas nas sequencias que definem a dimensão da resistência de Clara aos sistemáticos assédios que sofre, alguns, inclusive bem perversos.
Sem flashback (salvo na primeira sequência do filme), mantem o trânsito da velha senhora no hoje dimensionado pelo prazer de ela viver ao seu modo, naquele lugar onde está supostamente isolada, visto que a antiga vizinhança já vendeu suas propriedades ao intransigente empresário que se aplica em um jogo cada vez mais agressivo.
Nessa tessitura narrativa em que a pressão do capital explode as resistências dos mais fracos, lembro de “Harry, amigo de Tonto” (EUA, 1974) filme de Paul Mazursky em que Harry Combes (Art Carney), um professor aposentado com 70 anos, é forçado a deixar seu velho apartamento em Manhattan, embora utilize todos os meios legais para se manter no lugar onde sempre viveu com sua falecida esposa, criou seus filhos e que será demolido para a construção de um estacionamento. Sem lugar para viver bem, pois não se dá com a nora, Harry inicia uma viagem, sem destino, levando seu gato, Tonto, como companhia.
Vê-se o diferencial entre os dois personagens de 70 anos sendo expulsos do lugar onde construíram suas vivências e seus afetos e que são tão caros para eles, haja vista que em cada objeto a lembrança de sua vida antiga emerge porque está forte na memória afetiva construída. Enquanto Harry segue um plano temporário de vida, encontrando amigos nos bancos de praça e fazendo amizades provisórias, Clara não se deixa influir pela agressão que sofre diariamente dos empresários e nem da decisão dos filhos. Nessa sequência da presença destes e outros familiares a síntese dos diálogos introduz o público nesse grupo, na forma de eles viverem, na profissão da mãe e no modo desta infringir o autoritarismo de alguns deles impondo sua vontade na tão “pródiga” venda do apartamento. Essa é uma sequência fundamental para mostrar quem é Clara, o que quer, o que não quer e demonstrar o pouco afeto dos filhos ao lugar onde cresceram e de suas lembranças. Principalmente para a filha (Maeve Jinkins, muito bem), qualquer “muito dinheiro” é passível de valer aquele espaço.
Mas Clara não se espedaça. Mostra-se “inteiriça” até num plano que poucos filmes apresentam, referente a questão da sexualidade do/a idoso/a (Mazursky não mostra esse aspecto em Harry). E até o fim vai à luta pelo que é seu, usando estratégias do jogo que a empresa imobiliária usara consigo.
O fecho do filme é justamente a expressão total da figura de Clara que a cada plano vai recebendo tratamento parcimonioso de Kleber Mendonça Filho. A construção da personagem não se revela pronto numa linearidade que lhe forneça a identidade acabada, nem se sabe quem ela é, salvo a força que emana de suas convicções nas situações vivenciadas e em diálogo com outros conviventes emergindo suas características de ser mulher, de sentir saudade do marido morto e dos filhos que nem sempre a visitam. Clara vai à luta e se sente bem por rejuvenescer a cada conquista. Aparentemente tão pequenas, individuais, mas com a força orgânica de quem sabe o que é uma conquista.
Alguns poucos tropeços não tiram o brilho de “Aquarius”. Que até no título se dá a ver o lado metafórico do filme.
Ah, sim: Sonia Braga excepcional!
Excelente.