Sônia Braga - num momento excepcional
O
diretor, roteirista e produtor pernambucano Kleber Mendonça Filho realizou seu
segundo filme longa-metragem, “Aquarius” (o primeiro, “O Som Ao Redor”, 2012),
cuidando que o argumento não se restringisse a um só eixo dramático, mas a uma
maior amplitude de sub-tramas inscrevendo-o a partir de uma personagem, da
presença de pessoas e manifestações sociais que demonstrassem o macrocosmo de
um país que pudesse ser capturado do espaço micro – de uma família que festeja
um aniversário e a recuperação da saúde de uma jovem mulher, à captura de um
momento na história desta mulher já idosa – com circulação entre as múltiplas
determinações da produção material dessa história, com o olhar na presença da
política, dos sentimentos, dos afetos, das lembranças, das formas de vivência
que mostrassem as pessoas e os contextos diferenciados.
No
primeiro foco a jovem Clara emerge de cabelos à escovinha, circula entre amigos
na festa de aniversário no apartamento em que a tia celebra 70 anos. O
deslocamento dessa sequência inicial para Clara (Sônia Braga) já idosa
desenvolve-se em uma outra perspectiva, no mesmo apartamento em frente à praia
da Boa Viagem (Pe). Aos poucos, essa figura vai se definindo como uma pessoa que
cuida de si própria em um cotidiano solitário, mas cheio de vida, circulando entre
o mando da casa, a convivência com uma empregada e os passeios à praia onde curte
conhecidos provisórios, além de criar novas amizades.
Nesse
reflexo da presença de Clara no apartamento centra-se o segundo eixo do drama de
“Aquarius” quando ela resiste aos especuladores do mercado imobiliário que a
visitam querendo comprar seu imóvel para construir algo ”mais moderno”, como
dizem. Ela foi a única pessoa que não aceitou sair de lá, seu espaço de
moradia, onde tem tudo o que quer, conviveu com seus amores, marido e filhos,
criou um forte vínculo sentimental ao lugar. Suas lembranças são muitas e essas
vão sendo repassadas nas sequencias que definem a dimensão da resistência de
Clara aos sistemáticos assédios que sofre, alguns, inclusive bem perversos.
Sem
flashback (salvo na primeira sequência do filme), mantem o trânsito da velha
senhora no hoje dimensionado pelo prazer de ela viver ao seu modo, naquele
lugar onde está supostamente isolada, visto que a antiga vizinhança já vendeu
suas propriedades ao intransigente empresário que se aplica em um jogo cada vez
mais agressivo.
Nessa
tessitura narrativa em que a pressão do capital explode as resistências dos
mais fracos, lembro de “Harry, amigo de Tonto” (EUA, 1974) filme de Paul
Mazursky em que Harry Combes (Art Carney), um professor aposentado com 70 anos,
é forçado a deixar seu velho apartamento em Manhattan, embora utilize todos os
meios legais para se manter no lugar onde sempre viveu com sua falecida esposa,
criou seus filhos e que será demolido para a construção de um estacionamento.
Sem lugar para viver bem, pois não se dá com a nora, Harry inicia uma viagem,
sem destino, levando seu gato, Tonto, como companhia.
Vê-se
o diferencial entre os dois personagens de 70 anos sendo expulsos do lugar onde
construíram suas vivências e seus afetos e que são tão caros para eles, haja
vista que em cada objeto a lembrança de sua vida antiga emerge porque está
forte na memória afetiva construída. Enquanto Harry segue um plano temporário
de vida, encontrando amigos nos bancos de praça e fazendo amizades provisórias,
Clara não se deixa influir pela agressão que sofre diariamente dos empresários
e nem da decisão dos filhos. Nessa sequência da presença destes e outros
familiares a síntese dos diálogos introduz o público nesse grupo, na forma de eles
viverem, na profissão da mãe e no modo desta infringir o autoritarismo de
alguns deles impondo sua vontade na tão “pródiga” venda do apartamento. Essa é
uma sequência fundamental para mostrar quem é Clara, o que quer, o que não quer
e demonstrar o pouco afeto dos filhos ao lugar onde cresceram e de suas
lembranças. Principalmente para a filha (Maeve Jinkins, muito bem), qualquer “muito
dinheiro” é passível de valer aquele espaço.
Mas
Clara não se espedaça. Mostra-se “inteiriça” até num plano que poucos filmes
apresentam, referente a questão da sexualidade do/a idoso/a (Mazursky não
mostra esse aspecto em Harry). E até o fim vai à luta pelo que é seu, usando
estratégias do jogo que a empresa imobiliária usara consigo.
O
fecho do filme é justamente a expressão total da figura de Clara que a cada plano
vai recebendo tratamento parcimonioso de Kleber Mendonça Filho. A construção da
personagem não se revela pronto numa linearidade que lhe forneça a identidade
acabada, nem se sabe quem ela é, salvo a força que emana de suas convicções nas
situações vivenciadas e em diálogo com outros conviventes emergindo suas características
de ser mulher, de sentir saudade do marido morto e dos filhos que nem sempre a
visitam. Clara vai à luta e se sente bem por rejuvenescer a cada conquista.
Aparentemente tão pequenas, individuais, mas com a força orgânica de quem sabe
o que é uma conquista.
Alguns
poucos tropeços não tiram o brilho de “Aquarius”. Que até no título se dá a ver
o lado metafórico do filme.
Ah, sim: Sonia Braga excepcional!
Excelente.