segunda-feira, 15 de outubro de 2007

A DÁLIA, O LUTADOR E O FILME “NOIR”

A Dália Negra”(The Black Dhalia/EUA, 2006) homenageia, mais do que simplesmente se filia, (a)o filme noir. O roteiro de Josh Friedman baseia-se em um romance de James Ellroy sobre um policial que também é lutador de boxe, Buck Bleichert (Josh Hartnett), encarregado, junto com o colega Lee Blanchard (Aaron Eckhart) de desvendar o mistério que cerca o assassinato de Betty Ann Short (Mia Kirshner), uma jovem candidata a atriz de cinema.
O caminho da investigação é palmilhado de personagens periféricas e situações, aparentemente, nem sempre importantes para elucidar o caso. No fim da missão, o assassino aparece e é punido. Mas não adianta o espectador bancar o detetive. Como nos melhores exemplos de noir o que interessa está além das suspeitas.
A literatura de cinema define o subgênero tido como “noir” (escuro) pelos franceses, a exemplo do dicionarista e cineasta Jean Mitry focalizando alguns exemplares festejados, especialmente os que foram realizados em Hollywood em seguida (e até em paralelo) ao chamado “filme de gangster”. Nesse apanhado teórico, mostrou a estreita relação da composição de imagem com o expressionismo e a tipificação de personagens que se repetem ao longo da história (como o caso do detetive de capa longa, chapéu de feltro, sempre com um cigarro na boca e com palavras irônicas engatilhadas para responder aos clientes e aos que precisem de suas informações).
O cineasta Brian De Palma, aluno-confesso de Alfred Hitchcock, vai ao assunto expondo logo algumas diferenças. O seu herói, Buck, não é um profissional exclusivo de um departamento policial. Na primeira seqüência do filme ele é visto como “boxeur”. Luta desigualmente e apanha. Mas está sendo pago para perder e o seu destino, embora deixe o ring, não se pode comparar com heróis desse esporte como o vivido por Robert Ryan no clássico “Punhos de Campeão” (um filme de ambientação noir). Antes de sua presença no cenário do crime básico na história (por sinal um caso real de assassinato), conhece a namorada do colega Blanchard, a loira Kay (Scarklett Johansson), uma típica “vamp” do gênero. Um relacionamento entre eles aponta em segredo, mesmo para a platéia, mas o que interessa logo após esse conhecimento é a visita à casa de uma colega da jovem assassinada, Madeleine Linscott (Hilary Swank). É na casa desta que se dá o primeiro passo para o trabalho do investigador e a primeira grande nuance de noir no filme.

No plano do detetive à mesa com a jovem investigada, os pais desta e a irmã, De Palma usa um recurso novo nesse tipo de história: o aproveitamento da lente grande-angular. O enquadramento deixa que se veja a imagem de Bucky ligeiramente deformada ao canto, com o afunilamento da perspectiva para o centro. Nesse ambiente, surgem os tipos que definirão o caso: o pai de Madeleine, o velho construtor Emmet Linscott (John Kavanagh), a esposa deste, aparentemente tresloucada, Romena (Fiona Shaw) e a filha mais nova, Martha (Rachel Miner). Emmet é reconhecido como o homem que vendeu madeira podre do “décor” de filmes mudos de Mack Sennett para construção de casas (que ruíram). A mãe revela o seu relacionamento com o mundo do cinema até na postura de uma espécie de clone da estrela de filmes mudos vivida por Gloria Swanson no “Crepúsculo dos Deuses”(Sunset Boulevard) de Billy Wilder. E Martha desenha logo a sua concepção de Bucky, peça que revela a sua inteligência e perspicácia.
A trama é sempre relacionada com o que Hollywood fez até chegar ao período focalizado (1946/47). O tipo de cortina usado na narrativa é aquela forma de correr uma imagem por sobre a outra como era comum nos filmes B e seriados. Os tipos usam a indumentária padrão dos heróis desse tipo de filme até à citação de “A Dália Azul” (The Blue Dhalia/EUA,1946) noir de George Marshall com base em uma novela de Raymond Chandler (especialista em historias policiais) à maneira de Ellery Queen e tantos outros autores que pintaram o cenário ideal desse tipo de trama. No caso, a primeira “dália” seria Verônica Lake, a atriz que usava o cabelo sobre a testa a encobrir um dos olhos, e a atual, que aderiu ao nome, é justamente Betty Short, a candidata a atriz barbaramente assassinada.
O embaralhamento de seqüências no modo de contar os fatos também é típica do noir padrão. Quem assistiu “A Beira do Abismo” (The Big Sleep/EUA,1946) de Howard Hawks, vai encontrar pontos de contato. Os autores sempre pautaram por intrometer ações no meio do caminho investigatório confundindo não só quem investiga um crime, mas quem, na platéia, quer ajudar na mesma linha.
Há algumas diferenças modernizantes, como pelo menos um encontro sexual (no auge do noir a censura não deixava que se visse nem mesmo ações que ajudassem a delinear o perfil de uma “femme fatale”). Mas até a decifração de “uma charada” é elemento do (sub) gênero. É só lembrar como Bogart responde a Mary Astor em “Relíquia Macabra”....
Para quem curte o tipo de filme e estuda história do cinema, “A Dália Negra” é um achado. O cineasta de “Vestida Para Matar” mostra mais uma vez a sua versatilidade e o pendor para temas criminais. É um veterano respeitado que não dá sinal de envelhecimento.

AS INVENÇÕES DO NOIR E A DÁLIA


Outras especificidades são valorizadas no filme noir por teóricos ou diretores da “geração jovem” como Paul Schrader (apud Paubel, in: Film Comment) que ao limitar seu enfoque em um período específico evidencia dois filmes – “The Maltese Falcon”(Reliquia Macabra) (1941) e “Touch of Evil”(A Marca da Maldade) (1958), considerando as seguintes características: o filme tem uma iluminação contrastante entre o negro (com centralidade neste último) e as sombras, e a não linearidade do tempo.
Embora definidas em categorias de análise da narrativa, o noir tem outras nuances que incorporam especificidades juntadas às qualidades mais firmemente consideradas pela teoria do filme, subjacentes em outras produções que são ambientadas em gêneros como o de gangster e o policial. Nestes, a circularidade da atmosfera e o anfiteatro das sombras são calcadas pela psicologia dos sub-dramas ou sub-tramas interferentes no ambiente onde se dá a ação. Ver, neste caso “Heróis Esquecidos” (The Roaring Twenties (1939), de Raoul Walsh, ou “Anjos da Cara Suja” (Angels With Dirty Faces, 1938), de Michael Curtiz. Estes filmes se traduzem pela psicologia do “não-alinhado”. Enquanto o primeiro credencia o herói de guerra sem emprego, o segundo é um menino de rua que adentra no mundo do crime como o meio que acha mais fácil de subsistência. Nos dois filmes as características “noir” estão presentes na iluminação e na postura dos principais personagens. Em 1941 com “Relíquia Macabra” (The Maltese Falcon, 1941), John Huston, impulsionou o gênero acolhendo todos os detalhes que seriam considerados básicos para se incorporar a aventura policial “standard” no “film noir”. Em todos evidencia-se um mundo em que os protagonistas mantém relações obsessivas e temperamentais, as mulheres são sempre as personagens divididas entre emoções fortes, cujos parceiros tencionam entre o amor e o ódio, entre o ciúme e a volúpia, tratando o desejo como intercorrente destes conflitos. Presentemente, o filme noir tem revelado níveis de captura das características clássicas, mas tem se favorecido do uso da nova dimensão formal (personagem, ação, tempo e espaço e processos discursivos) onde as tecnologias visuais dão a cor e a forma