sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

OS OITO ODIADOS


Samuel L. Jackson,Jennifer Jason Leigh e Kurt Russell , três dos "Oito Odiados" de Tarantino. Imperdível.

Na teoria do cinema há um enfoque interessante dos anos sessenta sobre o que foi chamado de “política dos autores”, defendido por diretores como François Truffaut, Jacques Rivette e o crítico e teórico do cinema André Bazin que explicavam essa posição considerando o estatuto artístico do cinema na demonstração de que um filme não resulta de um trabalho coletivo na perspectiva das massas (cf. o agravo do cinema de Hollywood nesse instante) mas se dá como uma expressão subjetiva, uma característica pessoal de uma pessoa. No dizer de Truffaut (“O Prazer Dos Olhos: Escritos Sobre Cinema”, 2000, p. 17 -20): “Um filme vale o que vale quem o faz (...) Um filme identifica-se com seu autor, e compreende-se que o sucesso não é a soma de elementos diversos – boas estrelas, bons temas, bom tempo –, mas liga-se exclusivamente à personalidade do autor. (...) “um filme é uma etapa na vida do diretor e como o reflexo de suas preocupações no momento”.
Em termos mais simples, considera-se cinema de autor quando aquele que cria assume as condições de diretor e roteirista. Geralmente os autores de filmes possuem o que se pode chamar de estilo, julgando-se pela literatura. E suas preferencias temáticas. Quentin Tarantino pode ser considerado um deles. Desde que surgiu com “My Best Friend’s Birthday”(1987) e “Cães de Aluguel”(Reservoir Dogs, 1992) escreve o que dirige. E em “Cães..” deixa ver a violência que admirou desde os anos em que era funcionário de uma locadora de vídeo e gostava de gêneros do tipo “western spaghetti” e gângsteres.
O atual “Os Oito Odiados” (The Hateful Eight, EUA, 2015) é o oitavo filme de Tarantino e ele se veste da fama que mereceu por sua preferência temática e forma de realização. No enredo, o oficial John Ruth (Kurt Russell) leva a fugitiva de justiça Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) para ser enforcada em Red Rock. No caminho encontra o Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson) que também carrega condenados, mas já mortos, pretendendo receber sua recompensa, como a praxe desse tempo, e se evidencia como o verdadeiro protagonista. Tem um grande trunfo consigo que é ser um exitoso entre os escravagistas vencedores, sendo emblemático por uma carta que havia recebida de Abraham Lincoln.
Em resumo é a discussão seguida de tensões, atritos dissimulados e mortes entre oito personagens, nos anos seguintes à Guerra de Secessão, que se encontram numa cabana em meio a uma tempestade de neve. A situação leva a mortes violentas. Mas neste encontro se revela parte da história americana e da índole das personagens marcadas por suas ideologias. Pode-se ver o filme como um apanhado de tipos rudes de alguma forma influenciados pelo conflito entre norte e sul do país, tendo a presença do militar negro um forte símbolo duplificado: enquanto alguns dos circunstantes o odeiam silenciosamente, evidenciando-se muitas vezes de forma silábica ou gestual, outros aspiram conhecer seu grande trunfo pós-guerra: a carta escrita para si, pelo então presidente abolicionista, demonstrando uma proximidade coloquial com o chefe da nação que se organiza após a guerra e a nova forma de tratar a situação étnica.
O filme é dividido em capítulos: Capítulo 1: Última Parada Antes de Red Rock; Capítulo 2: Filho da Mãe; Capítulo 3: O Armarinho de Minnie; Capítulo 4: Domergue Tem um Segredo; Capítulo 5: Os Quatro Passageiros; e Capítulo 6: Homem Negro, Inferno Branco. Nesse recurso sobrepõe-se integrá-los por meio dos diálogos, da ação que favorece a externalidade identitária de cada tipo, mas como se vê, embora revele alguém com seu segredo que só vai emergir quase no final, cada um deles possui a chave de sua posição em meio ao grupo e em função de um último estágio do alicerce roteirizado. E é nisso que o filme se fortalece, na conjugação de todos os liames que possam demonstrar a força de um sobre os outros, ao mesmo tempo que os motivos de cada um se presentificam naquele espaço tão restrito aclarando certas atitudes que só a devida solvência do mistério transforma as descobertas do perfil em motivos de vingança e ação violenta.
Tarantino usa quase 3 horas na sua narrativa claustrofóbica. Podia caber no palco o seu argumento ou seja, a mis-en-scène é teatralizada. As poucas sequencias fora do pequeno espaço onde os tipos digladiam verbalmente e com gestuais de violência (armas, gestos etc.) é do caminho da diligencia que os transporta, e um flash-back que mostra os donos do salão onde o grupo de caminhantes vai se abrigar, e definindo-se alguns comportamentos e cenas que se seguirão. Algumas destas cenas apenas reafirmam o tom violento da trama, como o homem nu arrastado pela neve. Também se realça o papel do negro (Samuel L. Jackson) e dos polos da guerra, ou seja, pessoas da União e confederados. É a história americana feita de explosões de violência.
É realmente um “tour de force” atacar todos os parâmetros em tanto tempo na tela. E o cineasta foi mais longe: filmou em 70mm como se faz em grandes espetáculos, ampliando com isso o espaço físico da ação (que preponderantemente se apega às falas).
Jennifer Jason Leigh, veterana com 90 filmes no currículo (dois a estrear, fora uma série de tv) foi candidata ao Globo de Ouro e agora ao Oscar como atriz coadjuvante, por sua atuação neste “Oito...”. Ela representa a mulher rebelde, condenada e em luta por sua liberdade na esperança de reverter o que só ela mesmo sabe ser a realidade e a motivação de sua prisão. Maquilada como deformada por violência a atriz está em seus melhores momentos. Mas essa personagem tem uma aura de protagonista de sua própria vida e por isso é coberta de pancadas quando opina em qualquer assunto que está rolando entre o grupo masculino. Seus gestos são ardilosamente construídos e no capítulo final, expondo a síntese da trama, ela instiga um final que pode reverter o que até aquele momento foi manipulado pelos tipos masculinos.
A trilha sonora de Ennio Morricone, 87, veterano compositor italiano, é original e inédita, criada especialmente para o filme e fazendo uma conexão entre os capítulos. Disse Tarantino que pela primeira vez aplicou-se nesse ineditismo do filme: “Gosto mais de Morricone que de Chopin ou Beethoven. É o meu compositor favorito. Usar composições originais ajuda a ‘criar um clima’ para o filme”. Esse foi o único Globo de Ouro ganho por “Os Oito Odiados”.
Quanto ao roteiro é exemplar demonstrando toda a força que o filme desenvolve. Entretanto, foi preterido no Globo de Ouro e agora na indicação ao Oscar.
O filme é para ser visto com som original. Deturpações já basta a copiagem em 35mm. Com liames de trabalhos anteriores Tarantino reforça o seu tipo de fazer cinema. Um excelente filme.



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