sexta-feira, 13 de outubro de 2017

“A MÃE!” QUE EU VI



Jennifer Lawrence em "Mãe!" 

O teórico do cinema Jacques Aumont tem uma bagagem considerável de obras que abordam temas e categorias sobre a linguagem, sobre narrativa e imagem, além de análise de filme. Tenho me apropriado da leitura dessa literatura, menos do que eu deveria, mais em atender as necessidades urgentes. Dele, de alguma forma, me aproprio reconhecendo sua pertinência em considerar tipos de análise de filme. Um ponto necessário é o que ele trata em torno da narrativa cinematográfica em “A Estética do Filme” (2002). Para ele, o início do cinema é um meio de registro de imagens e ao seguir a dinâmica do processo, esta arte encontra a narração. No primeiro caso, a imagem é figurativa representando o objeto fotografado, que se torna reconhecido e, nessa representação, explora o que quer dizer sobre esse objeto e, implicitamente, conduz um enunciado sobre esse objeto. Diz Aumont (2002: 90) “o objeto já é um discurso em si”. Quer dizer, esse objeto recria o sistema no qual gravita remetendo a representação do mesmo a um determinado discurso, ou a narração deste relacionando-a ao retrato fotográfico, os quais considera como narrativas. O autor trata também da imagem figurativa cinematográfica, em permanente movimento, consequentemente, em transformação constante.
A transposição de um recorte de Aumont sobre o conteúdo da imagem no filme e o nível de representação que os elementos do cinema exploram para a constituição dessa imagem pretende embasar meu entendimento sobre o filme “Mãe!” (2017), de Darren Aronofsky, utilizando ainda outros recursos da análise da argumentação e dos tipos constituídos relacionados entre si. Para isso, valho-me de outros argumentos de conteúdo analítico sobre a figura feminina da mãe (Jennifer Lawrence) e a masculina, Ele (Xavier Barden) considerando a imbricação entre as duas versões.
Em “Está a Mulher para o Homem assim como a Natureza para a Cultura?”(1979), a antropóloga norte-americana Sherry Ortner constrói uma interessante argumentação sobre natureza e cultura, explicando que são categorias conceituais e em algumas culturas “estas se estipulam uma oposição muito mais forte entre as duas categorias, que em outras (...)”. A autora levanta a tese de que a identificação feminina, em cada cultura, dá-se através de um símbolo inferiorizado, destacando três níveis do problema: a) universalidade da subordinação feminina; b) a variação cultural do específico feminino, visto através das ideologias, simbolizações, classificações socioculturais; c) posição entre a ideologia cultural e as formas de ação, decisões, influências, etc., das mulheres.
O problema da universalidade da representação sobre a subordinação feminina, ou seja, da desvalorização universal da mulher - fundamento de sua tese - é visto através dos seguintes dados: a) o elemento ideológico da cultura que leva à desvalorização explícita das atividades e dos papéis femininos, do que a mulher produz e dos meios sociais que utiliza, em relação ao prestígio assumido por qualquer dessas funções realizadas pelo homem; b) certos quadros simbólicos que facilitam interpretações implícitas realizadas através de avaliações inferiorizadas, como é o caso da "prerrogativa de violação”; c) e um último dado, refere à exclusão explícita da participação da mulher na esfera pública, com base em subclassificações sociais e culturais. Estes dados podem ser vistos inter-relacionados, embora qualquer deles evidencie um grau de inferiorização da mulher, em cada cultura, nem sempre considerados socialmente como discriminatório.
Observa-se, através da análise de Ortner, a tendência a demonstrar que a questão da desvalorização universal da mulher se define através da identificação simbólica desta com a "natureza" e do homem com a "cultura", surgindo daí as demais classificações que passam a determinar os estigmas e a negação de uma presença relacional hierarquizada entre o homem e a mulher.
Por outro lado, centrando na exposição de Bursh, o objeto tratado cria um discurso em representação, relacionando as imagens ao retrato fotográfico, considerando-os como narrativas.
“Mãe!” (Mother!, EUA, 2017, 2h02min), o filme de Darren Aronofsky, expõe uma argumentação clássica sobre uma mulher assumindo a categoria de mãe, usando elementos que evidenciam os caminhos da narrativa utilizada pela história original criada pelo diretor que é também o roteirista, traduzindo-se em planos que formam as sequências de tempo e espaço.
O enfoque do principal personagem masculino, chamado simplesmente de Ele(Xavier Barden), utiliza planos próximos e câmera sempre manual para edificar a imagem do poeta/criador em busca de inspiração – em bloqueio criativo -  para sua nova obra, contracenando com a mulher e a casa de moradia (ambas de confundem e estão a serviço d”Ele), ela vista quase sempre em close, e as dependências da casa em tomadas próximas, usualmente travellings, querendo dizer da importância da mulher/mãe sempre ligada à Ele, e a constante mudança que se faz nos aposentos. A Mãe (Jennifer Lawrence ) restaura o lar marcado pela deterioração de um incêndio, mas é como se essa atividade fizesse parte do “serviço doméstico”, haja vista que é dividido com o tempo de execução dessas tarefas.
Em algumas sequencias do filme, há tomadas que não chegam a delinear objetos e sim os estragos que se sucedem com as invasões de pessoas estranhas ao casal (especialmente a Mãe, sem que ela se faça ouvir pois, nos raros diálogos que trava com o marido, o que mais importa a Ele é a qualidade de senhorio, ou o que possa alimentar a sua vaidade de escritor bem-sucedido).
O artesanato de Aronofsky é sempre nervoso, procurando dimensionar a sua ideia de que a inspiração artística do homem deve sacrificar tudo e todos. Para isso o foco é sempre alegórico, não cabendo liames realistas a ponto de se ver o modo como “suga” o coração (a base da inspiração) da esposa depois de sacrificar o filho em holocausto como se ofertasse ao deus da fama o que se cria na carne. Mas é nessa base simbólica que se reflete toda a ideologia do modelo da cultura tradicional sobre as relações entre homens e mulheres que ainda hoje tem peso e que subsidia o reforço ao preconceito e à discriminação àquelas mulheres que deixam de seguir o padrão estabelecido. Essa a minha perspectiva crítica nessa encenação que não oferece uma opção para, no final, pensar que, enquanto roteirista e diretor, portanto, criador das imagens circulantes no filme, numa perspectiva mesmo alegórica, desse um lugar para mostrar uma nova possibilidade da narrativa, de fuga a esses padrões, apesar da retenção social na cultura hierarquizada das relações de gênero.
Há planos que levam à continuidade da ação e a continuidade da argumentação que tende a ser a continuidade da tese que foi proposta pelo diretor e roteirista: Ele (Barden) será sempre o criador a quem todos se submetem diante de sua criação (cf. Ortner). Quando ele deixa de criar é esquecido, mas quando surgem animadores para valorizar suas obras ele cresce, é capaz de destruir o ambiente e ser Ele, o mesmo que está diante do fascínio da criatura que renasce em sua obra.
A figura da Mãe embora seja vista como a restauradora da casa incendiada, aquela que guarda as obras do criador - as vidas humanas, mas são, também, parte da obra que é gestada por ele - está sempre em segundo plano se admirando do que ocorre na relação dela e d’Ele. O acervo externo que Ele coloca para dentro de casa sem que ela tenha acesso a uma decisão para que isso ocorra – os humanos – o pai, a mãe e os filhos que chegam e se tornam hóspedes e/ ou tomam conta da casa – tem mais peso nas decisões d’Ele do que no dela que se vê isolada, oprimida. Decisões geradas pela inconsciência dela sobre a atitude tomada por Ele, que se manifesta prazerosamente sobre a presença intima e cada vez mais delirante de seus admiradores.
Assim, seguem os planos organizados no filme – entrando espaço e tempo nas sequencias construídas – com grande aspecto da simbologia como que são apresentados. E o final remete à perspectiva do início do filme - o criador já se fez por outros enredos aos quais submeteu o que será visto em seguida, é um fato recorrente – esmaga um coração extraído das entranhas da Mãe, transformando-o em mais um cristal que só atinge o pedestal depois dessa operação entre a extração do que há de mais puro na representação do amor.
Se se pensa em restauro de uma perspectiva crítica sobre a situação das mulheres em luta por direitos iguais e sendo exposto todo o desrespeito à figura feminina representada pela Mãe, não vi nenhum nível de exposição desses símbolos restauradores, mas da recorrência ao que que Sherry Ortner constata em sua versão sobre o modelo definidor de “natureza” e “cultura” revelando as representações tradicionais de gênero. Usando um conceito que me fascinou há um mês, apresentado por uma graduanda da área de Letras/UFPA, percebe-se que, entre símbolos e metáforas do filme, há um “apagamento” da voz da mulher tratada como Musa.
Há muito mais para que seja tratado no filme, como a versão de alguns textos críticos que evidenciam o discursos bíblicos aproveitado pelo diretor/roteirista na sua narrativa cinematográfica. Alguns até estabelecem as passagens desses discursos apontando o que há de integrativo no texto fílmico. Noutra ocasião trato disso. Lembro apenas que para fugir ao modelo da mãe submissa, a Mãe/Musa sem voz, ao apagamento da personagem Mãe, precisava um outro modo de tratar a argumentação proposta. Há as mulheres anônimas da Bíblia que com certeza avançaram naquele ambiente patriarcal e deram o seu recado.

Cotação ao filme: REGULAR.


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