sábado, 4 de junho de 2022

PUREZA, O DOCUDRAMA, E A ODISSEIA DA VIOLÊNCIA

 

Dira Paes representa Pureza, a mãe em busca do filho e a denúncia da escravidão moderna 

Uma prática contumaz de minha escrita é revelar alguns pontos que às vezes preciso expor para o reconhecimento de minhas reflexões, desvelar uma história de vida. A avaliação que fiz após assistir ao filme “Pureza” (Brasil, 2019, 1h41min), deixei para um texto final. Preferi tratar do filme e, na conclusão, essa seção da minha experiência de pesquisa sobre as conflito de terras com personagens entrevistadas, pode ser registrada.

Dirigido por Renato Barbieri, com roteiro do diretor e de Marcus Ligocki Júnior, tendo como protagonista a atriz Dira Paes, além de outros atores coadjuvantes, o filme tem base na história real de Pureza Lopes Loyola, moradora na zona rural, que sai em busca do único filho há muitos meses sem dar notícias, desde que se aventurou em busca de novos trabalhos que tirassem a mãe e ele próprio da vida miserável que levavam no interior maranhense, numa olaria precária. No desenrolar de uma caminhada urbana a mulher percebe que ninguém viu nem conhece seu filho, mesmo apresentando uma foto em que ele poderia ser reconhecido. E nesse percurso vai sabendo de outros locais de trabalho que são possíveis de o filho estar na lida. Segue essa procura, o filho em primeiro lugar, e enfrenta qualquer obstáculo desde que consiga descobrir seu paradeiro. Consegue trabalho em uma fazenda e se depara com situações assustadoras, de maus tratos e violência e escravidão até o momento em que é possível reconhecer que a ousadia de percorrer tantos caminhos também justificam uma denúncia sobre a dimensão escancarada da violência.

Esta síntese de uma argumentação da história das caminhadas de Pureza, a mãe que ama o filho e objetivamente exige-se encontrá-lo, a meu ver, expressa-se em três atos, na construção do roteiro e realização do filme.

O primeiro ato é a exposição de um perfil provisório (forma inicial de apresentar esse aspecto) sobre essa mãe-mulher. Essas sequências apontam para as condições de sub-trabalho de Pureza e do filho Abel, a penúria em que vivem numa casa desconfortável, o tipo de produto produzido – tijolos precários – e, sem dúvida, forma de pagamento ainda mais precária. É a miséria que briga com a necessidade para garantir-lhes a sobrevivência. O filho opta por um começo em novos trabalhos, fora de onde vive. E a mãe, sem notícias dele deixa tudo, trabalho e casa, meses depois dessa situação.

Veja-se, o corte temporal entre a saída do filho, de casa, e o tempo em que ela vai em busca de notícias, traz as referências na fala de Pureza aos interlocutores por onde circula. É uma forma de evidenciar que houve um tempo em que ela esperou por ele e não contatou. É uma estratégia estética entre o tempo passado e o tempo presente sem que haja um indicativo sobre isso.

O segundo ato que expõe outros aspectos do filme é quando a personagem Pureza vê uma oportunidade de chegar até ao filho se aproximando de um grupo de trabalhadores reunidos para embarcar para outra cidade, uma vez que seu percurso busca outros rumos. As fazendas dos municípios paraenses estão contratando trabalhadores. O responsável pela articulação é claro e decisivo quando pronuncia seu discurso de excitabilidade aos que estão no grupo, ansiosos por qualquer trabalho. E Pureza é incluída na vaga da cozinheira que faltou ao encontro. Ela estava lá por outro motivo, mas vê que pode dar conta do “serviço”. Mulher é sempre vista como doméstica, cozinheira e tudo nessa linha do sub-trabalho feminino.

O terceiro ato é a vivência da mãe no processo de trabalho na cozinha dos chefes, local onde também foi instalado um sistema de radioamador. Entre as tarefas domésticas, o contato com os trabalhadores, e principalmente com os chefes, Pureza atende aos chamados a estes, pelo rádio, e sua primeira pergunta é sobre o filho. Assiste à violência contra os trabalhadores, a falta de salários conforme o prometido, o tratamento aos que se rebelam para deixar o emprego e a violência contra os que enfrentam as regras. Morte, trabalho escravo e poder sobre a vida de todos é um aspecto que ela observa e se revolta, pois supõe esse tratamento ao próprio filho. Às vezes trata os trabalhadores com carinho, ou lhes leva alimentos. E, na observação desses sofrimentos, consegue uma licença para ir à cidade e então começa uma outra fase em que se engaja para denunciar aquele estado de coisas.

Por que dividir em atos este texto reflexivo sobre a elaboração do roteiro e a realização do filme? Na verdade, a noção que é evidenciada e esse aspecto não muda, uma assertiva singular porque discriminada pelo imaginário social, é que Pureza vai até as últimas consequências – tarefeira, militante e ousada – pela sua condição materna. Esse aspecto é central na estruturação da narrativa e por isso vejo uma estética inventiva latino-americana, ao avaliar, por exemplo, os escritos de Silvia Oroz sobre o melodrama, o cinema de lágrimas. Não que o público se debulhe em lágrimas ao assistir ao filme, mas este deixa ver o que tem maior repercussão no embate político assumido, nas “considerações finais” pela mãe de Abel.

Considerei “Pureza” numa estética de docudrama, que segundo os textos que li “é um estilo de documentário que apresenta de forma dramática a reconstituição de fatos, utilizando-se atores para isso. Podem ser representados assuntos contemporâneos ou eventos históricos (Compact Oxford English Dictionary).

No caso de “Pureza” isso ocorre. E o diretor apresenta, nos créditos finais, as consequências de edição de políticas com o avanço das denúncias de Pureza Lopes Loyola.

Gostei muito do filme. Li algumas críticas inclusive questionando a condição da mãe como algo extemporâneo.

A estética latino-americana precisa ser valorizada e os filmes brasileiros, nessa linha de denúncia, devem utilizar dela e sair das “caixinhas anglo-americanas”.

 

UMA HISTÓRIA PESSOAL: COMO ENTENDI “PUREZA”

Nos anos 1980 eu estava definindo o tema de discussão de um projeto para o mestrado com pretensão de apresentar ao NAEA, uma pós-graduação a qual eu poderia tratar do problema que eu já havia definido: as mulheres na luta pela terra na Amazônia. Esta questão emergira pela permanente convivência na CPT – Comissão Pastoral da Terra – levada por Isabel Tavares da Cunha, grande amiga e parceira na militância pública e que estava atenta à violência que eclodia nos “conflitos entre os grandes proprietários, amparados pelo governo e economicamente poderosos, e os pequenos posseiros isolados e desprotegidos, invariavelmente os perdedores. Muitos morreram vítimas de pistoleiros, outros fugiram das fazendas onde viviam em regime de semiescravidão.” (CPT-CPDOC).

Percorrendo alguns municípios onde as mulheres dos trabalhadores rurais monitoravam a presença de seus maridos presos, sentadas nas portas das cadeias, haja vista que à noite os milicianos os levavam para Belém e/ou “desapareciam” com eles, considerei que esse era o meu tema-base para estudar. Fiz várias entrevistas com pessoas integradas aos movimentos sociais entre os quais, o Humberto Cunha e outros nessa linha indicados por ele. Sistematicamente esses encontros eram em locais que só se sabia na hora da entrevista. E foi nessa condição de pesquisadora e militante do movimento de mulheres que percebi os conflitos de terra, o processo de semiescravidão em que viviam os agricultores e os que procuravam emprego nas fazendas cujos terrenos eram desmatados e limpos para a criação de gado. Nesse momento vários personagens vieram à tona nas entrevistas, como o “gato”. Fiz entrevista com um deles também. Veja-se que segundo dados “... entre 1975 e 1984 foram mortos pelo menos dez agentes da CPT e 37 líderes rurais. Os trabalhadores escravizados e mortos nem tinham conta. Mas havia denúncias sobre esses assassinatos.

Por condições objetivas (docente da UFPA, jornalista em O Liberal além de mãe de quatro meninas), angustiada por não poder viver nessa caminhada sistemática nos locais em que as mulheres rurais viviam seus dramas de vida e morte, optei por outro tema sobre as mulheres na política paraense, ideia das conversas com um colega do então Departamento de Ciência Política, o Raimundo Jorge de Jesus – trocar os estudos da área rural pela urbana. E o problema angustiante – academia e militância – se resolveu e escrevi minha dissertação de mestrado, transformada em livro, hoje.

Ao assistir “Pureza” as lembranças desse tempo nas caminhadas dos trabalhadores rurais com a Isa Cunha formaram fortemente minhas lembranças de observação e avaliação sobre a luta ao escravismo que ainda existe. (LMA) 


 

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