terça-feira, 24 de outubro de 2023

A BARBIE QUE EU DEIXEI DE LADO

 



A garota que eu fui era apaixonada por bonecas. De pano, em princípio. Minha mãe cortava e costurava à mão. O tecido era de morim branco. Os vestidinhos de chita, coloridos, dando o suporte da cara com a linha colorida – cabelos (as vezes compridos), o nariz e as orelhas de linha preta, a boca, vermelha. As caixas de sapato eram as casas das nossas bonecas, pois minhas primas também traziam as suas para a tarde de brincadeiras. Aos sete anos me encantei com um boneco de celuloide que estava no leilão para ser oferecido às pessoas, na Festa de Nossa Senhora da Conceição, em Abaetetuba. Chorei pelo boneco, mas não consegui sensibilizar o leiloeiro (rsrsrsrsrs) e outra pessoa arrematou. Certo dia, consegui ganhar um, desses que estavam na moda, sem roupa, róseo. Foi minha paixão.

Continuo apaixonada por bonecas. Tenho umas 50, até importadas, visto que as pessoas próximas me presenteiam. De todos os tipos.

Esse preâmbulo vem em função do filme “Barbie” (EUA, Reino Unido, 2023) que assisti esta semana.

Colado no interesse de meninas por esse objeto de prazer e de brincadeiras, tenho avaliado as inúmeras opiniões sobre o filme, em textos de crítica ou posts nas redes sociais. A maioria amou o filme, outros avaliaram a significativa peça crítica contra o sistema patriarcal, outras transformaram suas análises apontando a tradução da narrativa em avanços da teoria feminista, valorizando a fantasia e o senso hilário de toda essa argumentação. Outros usaram a filosofia como instrumento de análise. Alguns viram o cinema dar um salto qualitativo e afastar-se do recorrente “cinemão americano”.

Pergunto: o que seria, então, o investimento hollywoodiano numa boneca que fez o furor das meninas de classe média, brancas, nos anos 1950, quando foi criada? A euforia em traduzir uma mudança, com a aval do filme “2001: Uma Odisseia no Espaço”, escrito e dirigido por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, quando o monólito interrompe o contexto antigo e dá a nova dimensão do futuro, reflete-se na sequência inicial quando a boneca Barbie aparece e a criançada que brincava de mãe, com seus bebês, suas cozinhas, o “faz-de-conta’ doméstico de uma imagem materna tradicional estilhaça suas peças infantis e desaparece. A sequência seguinte dá forma a um tempo e um espaço em que a nova imagem feminina vai dar as cartas e projeta uma infinidade de barbies festiva e fantasticamente vivendo suas vidas e o novo percurso a desenvolver as novas ideias de individualidade, novas representações do modelo da fantasia das meninas que adquirem o novo padrão e, com certeza, seguem em paralelo o processo de brincar de bonecas.

Mas o filme, em formato fantástico, segue o novo produto, cujo protótipo assumiu novos patamares na ambiência social, buscando as significações que interrogam os porquês da inexistência daquele mundo em que tudo é perfeito, onde as bonecas estão mais evidentes do que os bonecos. Convivem, mas não se imaginam importantes porque o produto comercializado para satisfazer o desejo das meninas é marcado pela figura feminina da Barbie. E onde ficam as consumidoras do produto que segue reorganizando as demandas sociais pelo divergente? Elas veem que não há somente modelos brancos, cabelos louros, mas os tipos multiplicam-se em várias cores, em indumentárias pouco conhecidas em diversos países e, francamente, não intercambiam oralidades, pois, se a Barbie fala com suas congêneres, a indústria de brinquedos já deu sinal de que outros modelos de bonecas tendem a dialogar com suas pequenas e adolescentes consumidoras.

E então há o intercâmbio com o mundo real, na figura de duas mulheres que expõem à boneca original, quais as situações que ela deixou de viver, porque não entendeu o seu viver naquele mundo perfeito e, em dado momento, os Kens assumiram o poder e as deixaram de fora, sentindo-se um produto a mais na investida fantástica, mas não na comercialização industrial – pelo menos no mundo real das consumidoras e na própria reforma industrial interposta pelos membros da empresa produtora do brinquedo. Veja-se: se as meninas adquirem a Barbie, o Ken nem sempre é desejado, mas aos poucos figura como “o par da boneca”. E sua presença é um adendo a mais na configuração da situação do desejo que as adolescentes veem emergir de sua sexualidade. Diga-se, os dois bonecos são assexuados, sabendo-se disso a partir de uma afirmação da Barbie a um senhor que insiste em não deixar que ela encontre alguém em seu bar (ou coisa assim). Se ela diz que não tem vagina, Ken, seguro do que diz, nega que não tenha o pênis.

E o jogo de poder continua entre as dificuldades de Barbie entender o processo pop que está se desenvolvendo em torno de si e suas congêneres e o aumento do poder que os Kens assumiram e tomam, inclusive a direção das normas que definem quem é quem naquela sociedade em que homens e mulheres ou bonecos e bonecas brincam de manter a autoridade.

É pela malicia de uma mentirinha de amor que o problema se desfaz. Barbie insinua-se sentimentalmente a fim de Ken e este se envolve com ela enquanto o coletivo de barbies pega o caminho da distração do líder e consegue assumir o poder, desmonta as normas da constituição e desfaz o que estava sendo vivenciado pelas bonecas num tempo em que elas se sentiam empoderadas.

E as consumidoras da Barbie, como ficam? Se elas não tinham diálogo com a boneca que amaram certo dia, o que ocorreu? Nos caixotes onde as guardaram depois de adultas, buscam hoje para rever o papel que representaram na vida delas? Viram sua vivência com a sociedade estrutural machista? Perceberam o percurso comercial das bonecas para a casa das meninas brancas e riquinhas? Entenderam isso como o trabalho feminista de evidenciar as sub-normas que definiram seus papeis sociais?

Nesse caso, enquanto a fantasia trata as Barbies dando um salto qualitativo nos avanços da mudança dos papeis femininos, eu, nos meus botões, sinto que ficou faltando a interlocutora principal que são as garotas que brincam de bonecas. Se nós, em tempos pretéritos, conversávamos com as nossas bonecas de pano, e definíamos onde elas iriam morar (rsrsrsrs) ou vestir, nos dias de domingo, por exemplo, as meninas que ganharam uma Barbie, o que fizeram? Guardaram-nas nas estantes para enfeitar uma sala? O quarto?

Ah, a narrativa cinematográfica, deu seu peso forte no processo dinâmico, expôs uma cinegrafia exemplar – os tons de rosa multidiversos (meus olhos cansaram de ver tanto róseo), composição das sequencias, em que as cenas se intercruzaram, apontando uma configuração estética traduzida de forma particular, em que as peças do figurino seguiam a perspectiva das mudanças de ponto de vista da boneca original absorvida com os resultados de suas instigantes ideias pós diálogos com mulheres reais. Então, a ideia final é de que a Barbie original mudou, tanto que na última sequência do filme ela vai consultar um ginecologista.

Não senti que o feminismo em processo nos estudos atuais tivesse amparo nas indagações da diretora Greta Gerwig que transferiu à Barbie suas angústias e a presunção de reconhecer que seria possível, o cinema fantástico nessas imagens satisfazer a linhagem feminista que augura novas formas de pensar, hoje, sobre o sistema patriarcal e o machismo sistêmico. Estou com estas atuais indagações.


Nenhum comentário:

Postar um comentário