A
garota que eu fui era apaixonada por bonecas. De pano, em princípio. Minha mãe
cortava e costurava à mão. O tecido era de morim branco. Os vestidinhos de
chita, coloridos, dando o suporte da cara com a linha colorida – cabelos (as
vezes compridos), o nariz e as orelhas de linha preta, a boca, vermelha. As
caixas de sapato eram as casas das nossas bonecas, pois minhas primas também
traziam as suas para a tarde de brincadeiras. Aos sete anos me encantei com um
boneco de celuloide que estava no leilão para ser oferecido às pessoas, na
Festa de Nossa Senhora da Conceição, em Abaetetuba. Chorei pelo boneco, mas não
consegui sensibilizar o leiloeiro (rsrsrsrsrs) e outra pessoa arrematou. Certo
dia, consegui ganhar um, desses que estavam na moda, sem roupa, róseo. Foi
minha paixão.
Continuo
apaixonada por bonecas. Tenho umas 50, até importadas, visto que as pessoas
próximas me presenteiam. De todos os tipos.
Esse
preâmbulo vem em função do filme “Barbie” (EUA, Reino Unido, 2023) que assisti
esta semana.
Colado
no interesse de meninas por esse objeto de prazer e de brincadeiras, tenho
avaliado as inúmeras opiniões sobre o filme, em textos de crítica ou posts nas
redes sociais. A maioria amou o filme, outros avaliaram a significativa peça
crítica contra o sistema patriarcal, outras transformaram suas análises
apontando a tradução da narrativa em avanços da teoria feminista, valorizando a
fantasia e o senso hilário de toda essa argumentação. Outros usaram a filosofia
como instrumento de análise. Alguns viram o cinema dar um salto qualitativo e
afastar-se do recorrente “cinemão americano”.
Pergunto:
o que seria, então, o investimento hollywoodiano numa boneca que fez o furor
das meninas de classe média, brancas, nos anos 1950, quando foi criada? A
euforia em traduzir uma mudança, com a aval do filme “2001: Uma Odisseia no
Espaço”, escrito e dirigido por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, quando o
monólito interrompe o contexto antigo e dá a nova dimensão do futuro,
reflete-se na sequência inicial quando a boneca Barbie aparece e a criançada
que brincava de mãe, com seus bebês, suas cozinhas, o “faz-de-conta’ doméstico
de uma imagem materna tradicional estilhaça suas peças infantis e desaparece. A
sequência seguinte dá forma a um tempo e um espaço em que a nova imagem
feminina vai dar as cartas e projeta uma infinidade de barbies festiva e
fantasticamente vivendo suas vidas e o novo percurso a desenvolver as novas
ideias de individualidade, novas representações do modelo da fantasia das
meninas que adquirem o novo padrão e, com certeza, seguem em paralelo o
processo de brincar de bonecas.
Mas o filme, em formato fantástico,
segue o novo produto, cujo protótipo assumiu novos patamares na ambiência
social, buscando as significações que interrogam os porquês da inexistência
daquele mundo em que tudo é perfeito, onde as bonecas estão mais evidentes do
que os bonecos. Convivem, mas não se imaginam importantes porque o produto
comercializado para satisfazer o desejo das meninas é marcado pela figura
feminina da Barbie. E onde ficam as consumidoras do produto que segue
reorganizando as demandas sociais pelo divergente? Elas veem que não há somente
modelos brancos, cabelos louros, mas os tipos multiplicam-se em várias cores,
em indumentárias pouco conhecidas em diversos países e, francamente, não
intercambiam oralidades, pois, se a Barbie fala com suas congêneres, a
indústria de brinquedos já deu sinal de que outros modelos de bonecas tendem a
dialogar com suas pequenas e adolescentes consumidoras.
E
então há o intercâmbio com o mundo real, na figura de duas mulheres que expõem
à boneca original, quais as situações que ela deixou de viver, porque não
entendeu o seu viver naquele mundo perfeito e, em dado momento, os Kens
assumiram o poder e as deixaram de fora, sentindo-se um produto a mais na
investida fantástica, mas não na comercialização industrial – pelo menos no
mundo real das consumidoras e na própria reforma industrial interposta pelos
membros da empresa produtora do brinquedo. Veja-se: se as meninas adquirem a
Barbie, o Ken nem sempre é desejado, mas aos poucos figura como “o par da
boneca”. E sua presença é um adendo a mais na configuração da situação do
desejo que as adolescentes veem emergir de sua sexualidade. Diga-se, os dois
bonecos são assexuados, sabendo-se disso a partir de uma afirmação da Barbie a
um senhor que insiste em não deixar que ela encontre alguém em seu bar (ou
coisa assim). Se ela diz que não tem vagina, Ken, seguro do que diz, nega que
não tenha o pênis.
E
o jogo de poder continua entre as dificuldades de Barbie entender o processo
pop que está se desenvolvendo em torno de si e suas congêneres e o aumento do
poder que os Kens assumiram e tomam, inclusive a direção das normas que definem
quem é quem naquela sociedade em que homens e mulheres ou bonecos e bonecas
brincam de manter a autoridade.
É
pela malicia de uma mentirinha de amor que o problema se desfaz. Barbie
insinua-se sentimentalmente a fim de Ken e este se envolve com ela enquanto o
coletivo de barbies pega o caminho da distração do líder e consegue assumir o
poder, desmonta as normas da constituição e desfaz o que estava sendo
vivenciado pelas bonecas num tempo em que elas se sentiam empoderadas.
E
as consumidoras da Barbie, como ficam? Se elas não tinham diálogo com a boneca
que amaram certo dia, o que ocorreu? Nos caixotes onde as guardaram depois de
adultas, buscam hoje para rever o papel que representaram na vida delas? Viram
sua vivência com a sociedade estrutural machista? Perceberam o percurso
comercial das bonecas para a casa das meninas brancas e riquinhas? Entenderam
isso como o trabalho feminista de evidenciar as sub-normas que definiram seus
papeis sociais?
Nesse
caso, enquanto a fantasia trata as Barbies dando um salto qualitativo nos
avanços da mudança dos papeis femininos, eu, nos meus botões, sinto que ficou
faltando a interlocutora principal que são as garotas que brincam de bonecas.
Se nós, em tempos pretéritos, conversávamos com as nossas bonecas de pano, e
definíamos onde elas iriam morar (rsrsrsrs) ou vestir, nos dias de domingo, por
exemplo, as meninas que ganharam uma Barbie, o que fizeram? Guardaram-nas nas
estantes para enfeitar uma sala? O quarto?
Ah,
a narrativa cinematográfica, deu seu peso forte no processo dinâmico, expôs uma
cinegrafia exemplar – os tons de rosa multidiversos (meus olhos cansaram de ver
tanto róseo), composição das sequencias, em que as cenas se intercruzaram,
apontando uma configuração estética traduzida de forma particular, em que as
peças do figurino seguiam a perspectiva das mudanças de ponto de vista da
boneca original absorvida com os resultados de suas instigantes ideias pós
diálogos com mulheres reais. Então, a ideia final é de que a Barbie original
mudou, tanto que na última sequência do filme ela vai consultar um
ginecologista.
Não senti que o feminismo em processo
nos estudos atuais tivesse amparo nas indagações da diretora Greta Gerwig que
transferiu à Barbie suas angústias e a presunção de reconhecer que seria possível,
o cinema fantástico nessas imagens satisfazer a linhagem feminista que augura
novas formas de pensar, hoje, sobre o sistema patriarcal e o machismo sistêmico.
Estou com estas atuais indagações.
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