quinta-feira, 22 de setembro de 2016

O CAFÉ SOCIETY DE ALLEN


Jesse Eisemberg e Kristen Stewart em "Café Society"

Aula de cinema todo filme apresenta, sendo ele avaliado bom, mediano ou péssimo. Cinema é arte, a única arte criada no sistema capitalista disse Vázquez, 1965 (“As ideias estéticas de Marx”). Na operação de criar o filme estende-se a natureza da estética e cinematográfica projeta seus pressupostos, alguns ousados, outros nem tanto, mas saídos da mente humana. Nessa expressão veem-se figuras marcantes de produtores de belas obras na arte do cinema. De Chaplin a Woody Allen passa-se por tantos outros que a cada leitura visual se inscrevem como necessários no plano existencial. Tenho meus próprios amores nessa arte.
E nessa perspectiva de ensejar critérios de valor ao recente filme de Woody Allen, “Café Society” (2016), evidenciam-se as nuances do que o filme extraiu de cada espectador/a. Os que detém certo conhecimento da narrativa cinematográfica observam os elementos constitutivos do filme. Os que se constituem em um público somente interessado nas realizações desse diretor também têm sua percepção própria do que viu e gostou ou não, alguns/as avaliando o repertório de suas obras, outros pelo enredo. Sintomático que mesmo os que detém uma significativa informação sobre cinema apresentem opiniões divergentes. Sempre o gosto determina a avaliação.
Nos filmes de Allen este se preocupa com a argumentação objetivada, o roteiro, a fotografia, a encenação dramática. De cunho próprio a sequência de elementos quer dizer que ele segue, como os demais diretores, uma meta ao desenvolver suas ideias, ensejá-las em um plano de desenvolvimento técnico e define a natureza dramática de expor essas ideias. Que se determina em um início, um meio e um fim, não necessariamente nessa ordem. Em “Café Society” a argumentação trata da indústria cinematográfica norte americana nos anos trinta e no modo como as principais figuras dessa indústria se articulam compondo um painel empresarial que torna o meio bastante sedutor, mesmo em empregos de baixa evidência. Hollywood se transforma no mundo fascinante a ponto de muitos aceitarem a subserviência em papeis de baixo nível. No caso do filme, o parente pobre (Bobby, Jesse Eisenberg) aspira tornar-se escritor e se muda de NY para Los Angeles, em busca de um tio (Phil, Steve Carell), produtor de cinema, que transita no meio da elite do star system em crescimento, para abrir seu caminho. Este será o eixo detonador de toda a trama, com o jovem sendo o office boy na empresa, se articulando entre a busca por uma posição social melhor, vivendo um romance com a secretaria particular do tio (Kristen Stewart) e todas as consequências que isso causa devido ao envolvimento daquele com a jovem e a sedução que as posses dele determinam no interesse dela. Entre idas e vindas num percurso de fora de seu interesse primeiro, Bobby se contenta com o modo tradicional de viver e, desse foco, estabelece uma maneira de crescer socialmente num outro mundo empresarial na sua cidade natal. Mas o lance do amor com a jovem Vonnie não foi resolvido. Será um dia?
O primeiro aspecto que se evidencia no filme é a fotografia de Vittorio Storaro (vencedor do Oscar na categoria por “Apocalypse Now”, “Reds” e “O Último Imperador”), exigindo ao diretor que ousasse na tecnologia digital, sendo então o primeiro filme de Allen a experimentar esse formato. Mas não só a fotografia lhe rende méritos e a expectativa do público é saber o que há de novidade nesse café que Allen providencia num cenário hollywoodiano dos anos trinta. A recorrência aos temas de sua predileção envolve a maneira de o roteiro favorecer sua “passada” pelos velhos caminhos conhecidos dos espectadores, salvo em “Blue Jasmine” (2013) sua obra de excelência nesta fase.
Em três recortes, as cores, os personagens e os lugares evidenciam os pontos de apoio do que quer tratar no que se pode chamar de comédia romântica. Los Angeles situa o lugar de iniciação de Bobby Dorfman / Eisenberg quer como o espaço em que pretende assumir uma profissão (diferindo dos membros mafiosos de sua família, em NY) como o que vai lhe dar entrada para uma nova classe social. A fotografia introduz as cores do diferencial entre essas classes, do sépia aos tons azulados impondo as hierarquias entre os que ditam as ordens na engrenagem da máquina da indústria que cresce. Nesse sitio Bobby encontra a mulher amada, Vonnie/Stewart, que ao mostrar-lhe a cidade se aproxima do jovem com as armas da sedução. Beleza e luzes brilham ao seu redor e envolve o protegido do chefe que também é o dela, inclusive sendo mais do que isso. Na condução dessas sequencias presentifica-se o tom do cinema dos anos trinta em que certa mulher da classe social alta é condutora de beleza e os homens se tornam cativos desse charme. Pelo menos no cinema.
O retorno de Bobby a NY sofrendo o mal do amor não correspondido pela opção de Vonnie em casar-se com o patrão incide no convívio em outro mundo. Deixa o cinema escorrer pela amargura do abandono da amada e reconstrói a vida num sitio doméstico onde mulher e filhos criam a nova cena para ele. A profissão de gerente de restaurante fino agrega-o na classe social abastada. Nesse segundo ato encontram-se novas cores, novos personagens e o reencontro com familiares que de um outro lado estão esbanjando violência e morte. Cores, sempre as cores definindo esses espaços. O brilho das luzes do restaurante contrasta com o escuro das vielas onde os corpos são deixados pelos parentes mafiosos. Nesse lugar e nesse tempo, a era do ouro do cinema contrasta com o período da depressão econômica.
Esse grupo dos bastidores formado pelos familiares de Bobby dá o toque da terceira vertente do filme. Embora se presentifique desde as primeiras sequencias compondo o perfil do personagem (numa cena de refeição conjunta, por ex.), em que pese alguns criticarem como “gratuita” a evidencia deles no filme, a meu ver marca o momento em que a depressão econômica (1929) ainda estava se rearrumando no mundo econômico e o gangsterismo se reorganizava em outras atividades, uma vez que em 1933 o presidente Roosevelt solicitou ao Congresso dos EUA a revogação da emenda constitucional da lei seca e os que enriqueceram nesse ramo, com a dificuldade econômica advinda, acirraram os ânimos encastelados entre as diferentes gangues que buscavam preservar cada palmo de suas áreas de influência. A guerra no período foi nesse tom e os Dorfman contribuíram nesse plano. Outro aspecto que se extrai deste grupo é o enfoque da crítica à família judaica, principalmente nos diálogos sobre religião, numa refeição doméstica.
Na devida exposição, “Café Society” apresenta uma estrutura dramática na composição do quadro de atores que considero na média da representação exigida pelos papeis. Se Jesse Eisemberg se sai bem circulando entre gângsteres familiares e hollywoodianos (cf. seu tio e o jogo verbal nas negociações da produção cinematográfica), está no mesmo clima quando apaixonado e também ao reviver o antigo amor a Vonnie. Kristen Stewart assegura pela fotografia de Storaro, as luzes e o calor ao novo amor, mas coerentemente se toca mais na posição econômica e social que o antigo namorado oferece. Como a atriz está em ascensão, ela apresenta sempre um melhor desempenho em cada papel que encarna. Na cena final do filme, os dois repercutem o silêncio-símbolo de um grande amor. Redefinirão suas vidas? Allen deixa na interrogação. Steve Carell, para mim, é sempre um ator renovado. Do bobinho em “O Virgem de 40 Anos” às novas caras que deu aos inúmeros filmes em que atuou, alguns melhores do que outros, neste “Café ...” está muito bem.
Canções de Richard Rodgers & Lorenz Hart dão o toque de jazz ao filme. Em Allen, não poderia estar de fora. Como também não poderia estar de fora o excelente roteiro, os enquadramentos, a mescla entre drama e comédia e o próprio diretor circulando no filme todo traduzindo sua presença na voz em off que domina a trama. Odisseia de Bobby no amor? Recurso de Allen para converter suas idas e vindas na difícil presença do amor em sua vida.
Quando referi acima que todo filme dá uma aula de cinema quis registrar que goste ou não goste de “Café Society” você sai do filme achando que o diretor está se repetindo, mas não pode dizer que ele não deixou registrado o seu ser enquanto criador.

Filme muito bom.

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