sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

OS CAMINHOS DO NATAL E A VEZ DOS FILMES





Não é de surpreender a cada ano a industria cinematográfica comercializar uma enxurrada de filmes sem qualidade. Alguns nem chegam ao mercado exibidor do filme mas se transformam em cópias de outra midia – DVD – procurando garantir os lucros que poderiam ser perdidos com os custos da produção. Realizações duvidosas às vezes sobressaem pelo assunto que nem sempre tem argumento original ou inédito, mas geralmente se mesclam a idéias que já foram lançadas para o público. Estruturas recorrentes endossam os “remakes” e são tratados como originais. Isso foi muito testado nos lançamentos deste ano de 2010.
Mas o presente texto quer ir além do cinema e se reportar ao assunto de hoje, o dia de Natal. Cinema temático saído do forno hollywoodiano não esquece a data. Tem sempre uma fresta para dizer como se portar nesse dia. Só um dia? Muitos dias? Só sentimento? Que sentimento? Não o que levou o “Esqueceram de Mim” a sair do sério e fazer mais dois ou três exemplares. A comédia sobrevive das idiossincrasias de qualquer gente e refere às situações absurdas para melhor fazer rir. O cinema do absurdo pode ser visto nos filmes fellinianos, mas a filosofia que o embasa não se enquadra no desta “penca” de descartáveis lançados a granel. Fellini prefere fugir com Giulietta dos Espíritos para além do amor e arriscar uma carta para certificar à amada que o sentimento é sério e carece de perdão quando “perde a linha”.

Lembro de um Natal que daria um filme. O último passado na família abaetetubense dos Reis Miranda, sem minha mãe viva. Nossa árvore se fazia de gravetos tirados no “bosque” (perto da casa de meu tio João Reis) e a beleza da arquitetura construída era a criatividade de minha mãe em considerar a relação entre a família, a festa e a importância de estimular o espírito de amor ao próximo (sendo este não só ditado pela biologia, mas pela pobreza, pela falta de amor que alguns “próximos” sentiam), na hora de fazer a festa. A procura da armação para a árvore já se constituía num aprendizado. Em grupo, a família ia buscar no “campo de aviação” a melhor ramagem para transformá-la em “árvore de natal”. Do papel crepom verde ao algodão feito neve, dos anjinhos desenhados e recortados aos miosótis feitos para a ocasião e emblematicamente apostos nos flocos brancos, dos “beijo de moça” que recheavam os saquinhos de papel, à areia, as pedras e o pedaço de espelho que se mantinham na base do tronco da ramagem, tudo se conservava numa condição mesclada de europeismo (neve, lago etc) para desabar nas marcas especiais dos docinhos regionais e das mensagens natalinas ensacadas e subscritas para um ou outro filho, conforme a filosofia que se detinha num dito a ser pronunciado com solenidade, no grande dia, após a “missa do galo”.

Num certo ano, ela deixou para nós apenas um saquinho esquecido num armário, com pedaços de palavras que haviam sobrado da fome das baratas da “lição individual a cada filho e que poderia adequar-se a qualquer um dos três que passavam juntos o primeiro Natal sem ela. Os dizeres lembravam um norte a ser seguido, sem terminativo definido, por culpa do inseto da vez que os deixou (os dizeres) interminados. Dava-nos, então maior responsabilidade. Não sabíamos o que fazer, mas tínhamos um horizonte a seguir porque fora partilhado em muitos anos de convívio com a mãe. O Natal ficou para sempre. A responsabilidade em fazer o que ela supunha o melhor para nós, ainda estamos fazendo até ao “grande encontro” e saber-lhe o que queria de nós. O “beijo de moça”? Ainda adoça a nossa vida e espera adoçar a dos que nos estão próximos.

Quem faria este filme? Jean-Luc Godard responderia com um “week-end” prolongado e visibilizaria a mensagem de minha mãe como uma incógnita do que é “viver a vida”. Talvez o “script” falasse “duas ou três coisas que soubesse dela” e responsabilizasse a árvore como a grande personagem da história em que se constitui a existência de uma pessoa. Sem terminativos, portanto.

Federico Fellini encontraria no sagrado familiar as noções para além de Cabíria, aquela que perdeu tudo, mas que se refez com o canto dos palhaços. E a vida continua, diria ele.

Ingmar Bergman levaria a cena para Färo e daria o papel principal para Liv Ullman tramar a “persona”. Alma seria a grande dama e manteria a mensagem natalina secionada. As múltiplas vidas de sua personalidade seriam reveladas através de “gritos e sussurros”, onde homens e mulheres morrem e renascem ao som do solene carrilhão e das cortinas sangrantes.

Charles Chaplin chamaria a si a comédia e daria um riso ao sentir nas mãos o polvilho desfeito do “beijo...”, ao abocanhá-lo para matar a fome de Carlitos.

Glauber Rocha mostraria seu imenso amor pela humanidade ao transformar um pequeno núcleo onde tudo aconteceu (árvore, mãe, filhos, saquinho de doce) na grande irmandade que deve ir em busca da paz pela “idade da terra”, vendo “Rosa e Manoel” achando na água do mar a sua grande metáfora de viver a vida.

E Frank Capra evidenciaria a importância da vida da minha mãe e lembraria o “outro lado”, demonstrando como seria a família e a própria cidade se minha mãe não tivesse nascido.

Este texto, mesclado de intimidade e de pedaços insertos da minha profissão, eu dedico a todos os meus leitores e para os meus amigos. Obrigada pelo que de melhor tivemos neste ano que termina. Um Feliz Natal para todos nós!

(Publicado em 2000, n' O Liberal". Refiz o texto com algumas modificações)


Um comentário:

  1. Luzia, maravilhoso texto. Lendo-o percebo muito do Natal de minha família, ainda hoje vívido e vivido entre irmãos, mãe, filhos, netos, sobrinhos.
    Viver em família é realmente um aprendizado. Aprende-se a partilhar, a respeitar e a aceitar o outro.
    Um ótimo Natal para você e sua família.
    http://diariodeumamulherdespeitada.wordpress.com/2010/12/24/24-de-dezembro-dia-oficial-de-dar-e-receber/

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