segunda-feira, 14 de novembro de 2011

VIAGEM FAMILIAR


“Uma Longa Viagem”(Brasil/2011) é especialmente uma longa conversa da diretora Lucia Murat com o seu irmão Heitor, lembrando as cartas que ele escreveu para ela quando no asilo transcontinental, levado a isso pela família que pretendeu livrá-lo da prisão como os irmãos, todos envolvidos na resistência contra o governo militar instalado no Brasil em 1964.

Heitor está não só envelhecido, a julgar pela retrospectiva que usa no seu papel o ator Caio Blat, como apresentando efeitos colaterais de seus anos de uso de drogas. Mesmo assim, conserva o bom humor. E faz contraponto com o tempo e o espaço que viveu. Do irmão Miguel, a quem o filme é dedicado, pouco se diz, ficando rápidas informações no correr da leitura das cartas e depoimento de Heitor.

O filme é primeiramente sincero. Poucos cineastas conseguiram jogar na tela suas vidas, seus problemas, seus momentos íntimos. Lucia que já havia feito um documentário contundente sobre os “anos de chumbo” com “Que Bom Te Ver Viva”(1989) e, no mesmo tema, Quase Dois Irmãos (2004), que lhe valeu o Prémio de Melhor Filme Ibero-Americano no Festival de Mar del Plata, regressa ao período de sua prisão, desta vez dando espaço à família, evidenciando o modo como os seus irmãos, especialmente eles, sentiram a repressão às idéias, ou, como diz uma vez Heitor, “á liberdade (....) que é o maior dos bens”. Os Murat tinham posses, podiam pagar advogados, e isso livrou Lucia de um confinamento mais demorado. Mas, ao que parece, Miguel teve outra trajetória, formando-se em medicina e se tornando pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (faleceu em 2009). Heitor fugiu do Brasil. Mas a fuga foi aparentemente física. Entregue ao uso do haxixe, especialmente quando esteve na India e se envolveu com os costumes da região, foi um espectador distante, sabendo do que estava acontecendo em sua pátria pelas noticias que chegavam aos países por onde passava e pelo correio. Tinha compulsão por escrever cartas à irmã. O filme é isso: as cartas.

Os recursos usados pela diretora para dar ao seu trabalho o feitio de um longa-metragem são muito criativos, driblando os recursos limitados de produção. Ela usa, por exemplo, “back projection”, ou seja, projeção de cenários (no sentido teatral) ao fundo de planos em que uma pessoa está presente (especialmente Heitor). Assim é que se vêem imagens de diversos países, seja em campo aberto seja em ruas movimentadas. O personagem fala e surge, ou nitidamente sobre as cenas projetadas no fundo, ou em silhueta como se um filme estivesse sendo projetado e uma pessoa se levantasse da poltrona sobre o foco do projetor e a sua sombra ganhasse a tela. Este recurso dilui o que poderia ser um desfile monótono de falas ou de leitura.

Premiado em Paulínia e Gramado, o novo documentário de Lucia Murat transmite a emoção que ela desejou que se registrasse de um drama particular. E por ser isso, um drama particular, não quer dizer que seja um “álbum de família” ou um assunto pertinente às pessoas envolvidas (ou gravadas). A mim pareceu um registro amplo e bem feito de um fato global, um quadro histórico que a autora está registrando em seu cinema. Trata-se de mostrar em imagens as marcas de quem viveu e sobreviveu num tempo que deixou sequelas físicas no corpo das pessoas, mas não destruiu nem as idéias nem o afeto que unia aquela família, em especial, os três irmãos.

O filme foi projetado no segundo dia da Mostra Amazônia Doc 3 de forma digital. Um processo prático que poderia ficar no velho Olympia como um presente necessário ao seu aniversário recordista (100 anos). Quem não assitiu ao filme de Lucia Murat vai ter que esperar o DVD.

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