terça-feira, 3 de setembro de 2013

SENHORITA JULIA


Anita Bkörk é "Senhorita Júlia", de Alf Sjöberg.

Quando August Strindberg escreveu “Senhorita Julia”, em 1888, a sociedade ocidental obedecia a postulados datados de dois séculos anteriores onde/quando as mulheres seriam escravas de um comportamento que minimizava seus instintos. E esses instintos, antes de Freud, seguiam o que no século anterior à edição da obra de Strindberg seriam modulados por uma sociedade francamente machista. George Rousseau (históriador da cultura americana), por exemplo, propôs o que chamou de “retórica dos nervos”, alertando sobre estereótipos dos gêneros acolhidos em uma literatura que se tornou admirada especialmente pela classe social mais abastada e que via nos atores uma sujeição da mulher a caprichos que no fundo inviabilizavam a sua autonomia e davam destaque à representação masculina.
O filme homônimo de Alf Sjöberg (1903-1980) que hoje será revisto em Belém (no Cine Olympia, às 18h30) baseia-se na obra de Strindberg, especialmente na versão para o teatro, mas tem o cuidado de aplicar-se à narrativa cinematográfica. Esse cuidado leva a certo desprezo para com uma interpretação psicossocial do tema. A hístoria da jovem de classe abastada que no baile da noite do solstício, se entrega ao empregado do pai sem medo de que esse relacionamento afete sua vida social (ou mesmo de forma particular, em família) é vista em uma linguagem especialmente cinematográfica, com enquadramentos que evidenciam expressões e uma edição que dinamiza a narrativa como se o filme fosse primeiramente uma parte da dança.
Sjöberg era, em 1951, quando o filme foi realizado, um ícone do cinema de sua terra (a Suécia). O espectador de hoje deve lembrar-se dele como o personagem do velho médico de “Morangos Silvestres”(1957, de Ingmar Bergman), que no caminho da universidade onde receberá um troféu evoca a memória de quadros de sua vida quando jovem e chega a se defrontar com a morte (a instigante sequência em que se vê num funeral ou quando examina um corpo que diz estar morto e isso é contestado por um examinador). Na qualidade de diretor, quando se decidiu a filmar “Senhorita Julia” sabia da capa preconceituosa que envolvia o original literário e procurou dar ao tipo interpretado por Anita Bkörk (já falecida), uma feição, sobretudo, de jovem alegre, expandindo a euforia de viver, mas sofrida quando se deixa enredar por uma relação com outra classe. E desse processo se vê envolvida pelo desdém do próprio namorado e pela família.
O filme começa com um plano de uma gaiola com um passarinho de estimação de Julie. Depois, o rosto dela aparece no canto do quadro, próximo de uma janela. A sequência posterior de Jean, o criado, comandando a carruagem atravessa estatuas de deuses gregos. Quando chega a Julie surgem estatuas de mulheres, mas sempre em segundo plano e sem a evidência das esculturas vistas anteriormente. Nada na construção das imagens é aleatório. Poucos filmes se dão a trabalho de precisar os elementos de linguagem cinematográfica. Por exemplo: quando há uma pergunta seguida de uma resposta o interesse repassa no campo-e-contra-campo ao jogo de closes. E há delírios cênicos como a cena do incêndio na casa do conde seu pai ou de um vendaval visto de uma sala.
O filme é exemplo de cinema muito bem construído. Na ânsia de fugir do teatro Sjöberg usou de todos os recursos para mostrar que também poderia ser cinema. E acabou realizando um dos mais representativos exemplos dessa arte. Tanto que algum exemplo de criatividade, com a inclusão de cenas de um tempo em outro é aquilo que se vê em “Morangos...” quando o velho médico, deitado na relva, vê-se no passado quando jovem. Sem corte. E em "Senhorita Julia" as imagens do passado sendo parte da narrativa da jovem circulam num segundo plano marcando os tempos da vivência da personagem. Ftografia magistral. Filme imperdível. 


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