terça-feira, 8 de setembro de 2009

À DERIVA







Heitor Dhalia. Conheci, a partir de seus dois filmes: “Nina”(2004, inspirado em “Crime e Castigo”, de Dostoievski) e “O Cheiro do Ralo”(2007), exemplares do tipo de cinema ao qual se introduziu esse cineasta pernambucano, criando uma aura extra-regional de enfoques reflexivos sobre a pessoa humana.
“À Deriva”(2009) está em exibição em Belém. Bastante aplaudido no recente Festival de Cannes, não tenho referências maiores de como foi recebido por aqui. Mantem um tom de fácil entendimento ao grande público, mas nem por isso deixa de ter uma base reflexiva sobre o tema da relação conjugal, extraída de olhares não convencionais, sem maniqueísmos, sobre a infidelidade.
Anos oitenta, o casal do filme – ele escritor (Vincent Cassel), ela doméstica (Débora Bloch) tem três filhos (duas meninas e um menino), de classe social alta, passam um tempo em Búzios, em vista de rever o relacionamento que parece desintegrado. Essas evidências são mostradas ao espectador a partir do olhar da filha mais velha, a adolescente Filipa (Laura Neiva). Sua circulação na família, entre os amigos e entre os irmãos repassa o ambiente familiar e social que à sua vista tem um lado de descobertas. De um cotidiano afinado com o pai – marcado pelas atitudes de afeto, pela disposição dele em brincar na praia e em fazê-la boiar na água – ela vai aos poucos avaliando certo distanciamento dele, as discussões com a mãe e a fuga para certo lugar que ela descobre ser a dos encontros fortuitos do pai com outra mulher. Nesse dia-a-dia entre os/as colegas, vai despertando também para o amor e a sexualidade sendo impulsionada para as inquietações de um tempo em que se julga às vezes dentro, outras vezes de fora do sistema afetivo com os amigos e amigas. Nesse grupo ela tem admiradores, há certa reciprocidade entre as escolhas que faz, mas está sempre em busca de algo. Instável emocionalmente diante das certezas que surgem, sua atitude é sempre de desconfiança. Impulsiva para um primeiro beijo, retraída para um segundo, revela-se madura para perceber que nem sempre suas atitudes são tomadas como posições de negação ao que não quer (viagem de barco com um colega e o assedio que sofre dele).
O processo da desintegração do relacionamento conjugal entre os pais, pelo olhar de Filipa, só chega de forma parcial quando estes resolvem se separar e chamam os filhos para uma conversa. A tensão interna entre o par não ocorre a partir de a jovem avaliar de forma integrada o que há entre os dois, mas já tendo um culpado para o esfacelamento da família – a infidelidade paterna - a causa consumada da separação. Ao denunciar isso à mãe recebe desta uma confissão trágica – ela ama outro homem mais jovem e seu pai havia narrado esse caso no romance que estava escrevendo.
Para Felipa há duas maneiras de enfrentar o bad-end – ou o final infeliz com a decisão da mãe de deixar a família em busca de seu caminho: ao descobrir uma arma na gaveta do pai associa ao fim que pode dar ao caso amoroso em que está envolvido. Mas a morte é moral e a entrega de sua virgindade ao barman a quem pedira uma dose de uísque seria mais plausível na retomada de um novo tempo no relacionamento familiar.
O mar pontua o roteiro. As primeiras imagens são de pai e filha brincando na água límpida de Búzio. Há intercalação de seqüências submarinas mostrando as pessoas na pratica da natação. Mas o que importa é a deriva, a predileção por se deixar levar, boiando, ao sabor da maré. Esta opção não é um simples artifício formal. É o próprio tema. Filipa, Mathia e Clarice vivem à deriva numa história que foi de amor. A mocinha, principalmente, assume a metáfora, não chegando a racionalizar o que se passa em casa, como é que o gancho familiar que a criou e aos dois irmãos e que até então se mostrava firme, se deteriora do dia para noite.
É claro que o tema não se esgota como dificilmente se esgotou ao longo da história da arte cinematográfica. Há exemplos brilhantes de verões passados e adolescentes descobrindo o amor, mas o caso de Dhalia ganha uma reação mais afinada com a idade do tipo. E a reação dos pais é mostrada no ponto critico do equilíbrio numa relação naufragada (até aí a importância da água como pontuação). Cotação: *** (Bom)

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