sábado, 26 de setembro de 2009

SINÉDOQUE CINEMA




Pedro Veriano dedica o seu espaço


ao filme “Sinédoque Nova York”


que pode ser visto hoje (sábado) e amanhã (domingo)


no Cine Estação


atendendo ao pedido dos


nossos críticos cinematográficos. (LMA).





A canção “That’s Entertainment” de Arthur Schwartz e Howard Deitz,


uma espécie de hino do “show business”, lançada em 1931, na Broadway, tem versos que registram a vida como se passada num palco, com alegrias e tristezas vistas na ótica da diversão. No filme “Sinédoque Nova York” de Charlie Kaufman, a base do hino está preservada no enfoque de um diretor de teatro que deseja colocar no palco os seus grilos, ou melhor, a sua vida íntima, levando a sinédoque do próprio teatro, ou seja, colocar no espaço cênico tudo o que passa pela mente de um autor. É por essa tentativa de devassa na mente


que em Cannes trataram o filme como o “Oito e Meio” do roteirista de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (o meu filme preferido dentre os bons que este cineasta escreveu). Mas Kaufann respondeu aos jornalistas que nunca havia visto o glossário afetivo de Fellini. As inspirações se tocam simplesmente porque a escolha de se tratar de emoções, no caso, é a cena, a representação, o que vale dizer o teatro como o cinema.
O filme se divide em pelo menos duas partes. A primeira é pé no chão, com o herói, chamado Cotard a lembrar a síndrome do “morto vivo”(o paciente do dr.Cotard que se achava morto), despertando e sendo acercado pelos familiares, no caso a mulher e a filha de quatro anos. Em poucos planos se sabe que esse herói é hipocondríaco, e a fobia expande-se à primogênita. A segunda parte começa quando ele recebe um prêmio em dinheiro por uma peça “retrô” (e aí vai a afirmativa de que o público não adere aos devaneios que transformam velhas linguagens seja no palco seja na tela) e decide encenar a sua pessoa, o que pensa, o que sente, o que sonha.
Numa conversa com o elenco ele expande logo a sua inquietação para com a morte. “- Todos vocês vão morrer”. Mas ressalta: “Por enquanto estão vivos”. Então se sabe que a peça tratará da inexorabilidade do fim. Como Woody Allen mostra em muitos de seus filmes. Nesse capitulo começa um redemoinho de seqüências que deixa o espectador com dificuldade de tomar pé em uma única sessão. Tempo e espaço se mesclam e não há pontuação para com os planos do mundo real e do imaginário que por sua vez pode ser a imaginação de um texto como pode ser um ensaio geral.
Sabe-se que a mulher de Cotard o deixa e leva a filha. Sabe-se que ela é pintora e faz quadros minúsculos, a serem observados com lentes. Cabe uma explicação temática: ela seria demasiadamente minuciosa da sua realidade. Impossível aturar um hipocondríaco. E sabe-se, por seu relacionamento com uma amiga, que é homossexual. Sabe-se também que Cotard busca a vida, ou melhor, a sua atividade fisiológica, em outras mulheres. Não se trata de amor, se trata de uma busca para continuar vivendo.A bilheteira do teatro, Hazel, é a primeira. O sexo não funciona a contento, e os encontros não marcam continuidade. Surge Claire, uma jovem atriz, como surge a psicóloga Madeleine, pintada como uma ninfomana, ou tendente a isso (mais uma caricatura da especialidade médica). Nada satisfaz como o tempo parece acelerar rugas e cãs. Vê-se Cotard envelhecido, mas ainda capaz de trabalhar no teatro. Ainda não é um morto-vivo, mas sente dificuldade até de achar atores que façam seus conhecidos, até mesmo que faça o seu papel. Entrementes, ou no meio do turbilhão de imagens soltas, surgem planos das mortes do pai e da mãe. Mais morte será a de um artista que não se vê da mesma forma, ou no mesmo tom de realidade cinematográfica. Nesse caso há um caixão na própria cena, no próprio palco, e aí a união teatro-cinema, ou delírio e consciência se fundem de vez.
A técnica de Charlie Kaufman segue aqueles lances de memória de “Brilho Eterno...” que transmudam realidades. No filme anterior, os enamorados testam-se num tratamento que os faz esquecer o tempo em que viveram juntos. Mas se amor é amor, um passando pelo outro no desconhecimento imposto pela terapia, surge uma fagulha que pode levar a um incêndio. Da mesma forma detalhes da peça de Cotard jogam-no para um passado que ele queria que fosse outro, ou que continuasse de outra forma. Mas se a peça ainda não foi encenada, a vida foi. E é melancólico constatar que o sofrimento pode ser visto como diversão (that’s entertainment).
Quando eu vi o filme pela primeira vez fiquei meio perdido no carrossel afetivo do personagem, mas senti medo quando um ator da peça a ser peça “conta” o que se quer fazer. Pensei que o excelente roteirista, e agora também diretor, estava demonstrando insegurança no que disse , ou mostrou, e resolveu dar uma colher de chá para a platéia explicando o que se viu. Felizmente errei, O filme não terminou aí.Volta ao labirinto e só minutos depois, Cotard, bem velho, deita a cabeça no colo de Hazel, não tão velha, e a imagem vai clareando até desaparecer (fade-in). Mais uma vez fui driblado, pois imaginava que o fecho seria o pano caindo, a revelação de que tudo era um teatro, tudo era a peça se moldando para uma estréia futura. Felizmente o cinema pede passagem. Não poderia, no palco, se ver expressões de perto, movimentos que desviam o olhar de forma especifica, deixando que só se veja um detalhe de plano e sem o recurso que poderia se usar no teatro de luzes apagadas e um spot em cima de uma figura. Por aí cinema e teatro largam as mãos que estiveram dadas. O filme é dos dois. Philip Seymour Hoffman, o melhor ator de língua inglesa desde Charles Laughton e Laurence Olivier, traça bem esta simbiose, fazendo crer num personagem que não se mostra linearmente, que não se conhece de aspecto além de uma abertura bem humorada (a constatação da hipocondríaca lembra aquele ditado de que é comum se rir da desgraça alheia). E não se diga que os coadjuvantes gaguejam. Kaufman mostra-se um bom diretor. Se quiserem mais do ritmo do filme que façam outro. Se a narrativa é labiríntica a vida não é menos. E o cinema que se aventura a dissertar a vida incorre num desafio à sua capacidade. Muitos tropeçam nisso aí. Charlie escapou. Palmas no acender das luzes. (Pedro Veriano)






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